Devolvam o meu futebol – Por Marcelo Zero

 

É 1980.  A equipe de uma TV brasileira está em Teerã para cobrir a crise causada pela tomada da embaixada dos EUA por parte dos guardas revolucionários iranianos. Voltando ao Brasil, já perto do aeroporto, os brasileiros resolvem fazer umas imagens externas. Sem perceber, filmam umas instalações militares. Em minutos, são presos por guardas revolucionários, kalashnikovs em punho.

Devolvam o meu futebol – Por Marcelo Zero

Os guardas não falam nada de inglês, francês ou espanhol. Muito menos português. Os brazucas não falam nada de farsi. Não há comunicação possível. Os brasileiros tentam desesperadamente explicar aos guardas que não são espiões da CIA. Em vão. A tensão cresce.  Eles já se imaginam jogados em alguma masmorra quando alguém tem um estalo e exclama: Pelé! 

Como por arte de mágica, a tensão se esvai. As kalashnikovs somem e surgem os sorrisos. Um guarda dá sonora palmada em sua coxa esquerda  e exclama: Rivelino!

Gérson! Jairzinho! Tostão!, gritam outros. Os guardas, que mal sabiam onde ficava o Brasil, conheciam toda a escalação da Seleção de 1970.

Entre animadas mímicas de grandes gols e jogadas da Seleção, os brasileiros são finalmente libertados. Libertados pela memória do futebol brasileiro.

Essa história, verídica,  é ilustrativa da importância do futebol para  a nossa identidade como brasileiros. O futebol, para nós, não é apenas um esporte. É uma manifestação da nossa maneira de ser. Ele é parte integrante da nossa cultura popular, tão brasileiro quanto nosso carnaval de rua, as festas juninas e outras manifestações culturais que nos definem e nos expressam. Ele é um riquíssimo patrimônio cultural-esportivo do Brasil.

Não é um futebol qualquer. Os guardas iranianos se lembravam vividamente da nossa Seleção não porque ela tivesse conquistado a Copa do Mundo, mas porque ela havia conquistado algo perene e muito mais importante: o coração e as mentes dos torcedores do planeta. Como outras seleções brasileiras, aquele era um time que não se limitava a ganhar. Encantava. Fazia sonhar. Colocava um sorriso no rosto do mais sisudo guarda.

Aquele era um time que fez um grande intelectual inglês, Eric Hobsbawn, escrever que, quem viu a Seleção brasileira de 1970 jogar, sabe que o futebol pode ser uma forma de arte. Uma forma universal de arte, que encanta igualmente brasileiros, guardas revolucionários iranianos e intelectuais ingleses.

Essa arte não surgiu dos porões da CBF, dos mal-geridos e tortuosos meandros dos nossos clubes de futebol, dos calendários caóticos de nossos campeonatos, dos conluios tenebrosos entre nossos ubíquos cartolas e empresários. Não. Essa arte surgiu em nossas ruas, praias e parques. Foi em nossas peladas que ela se vestiu com dribles desconcertantes, passes milimétricos, chutes de parábolas improváveis e a extraordinária inventividade de quem aprendeu a se esquivar da pobreza.

Infelizmente, essa arte está cada vez mais apropriada pelos interesses, frequentemente escusos, de quem não a criou. De que quem não tem nenhum compromisso com seu cultivo.  

Tal apropriação indevida vem enfraquecendo o nosso futebol. Na época em que produzíamos craques aos montes, a força do nosso futebol se impunha, apesar da CBF, da cartolagem, dos calendários caóticos, do amadorismo clubístico, dos estádios desconfortáveis e inseguros, da insegurança e dos interesses econômicos das grandes empresas de mídia.

Ganhamos cinco campeonatos mundiais, às vezes com brilhantismo, contra todos esses fatores. Infelizmente, a nossa grande fábrica espontânea de talentos está se esgotando, por diversos motivos. Não geramos mais tantos craques. Antes, tínhamos cinco ou seis em cada seleção. Hoje, temos apenas um. Não temos mais condições de reverter, dentro de campo, a incompetência que reina, soberana, fora do campo.

Assim, nossa seleção anda praticando o mesmo futebol melancólico de nossos clubes. Um futebol feiamente vestido de chutões e maus tratos à bola. Um futebol que desencanta todo o mundo: brasileiros, guardas revolucionários iranianos e intelectuais ingleses. Um futebol que não libertaria mais equipes de TV brasileiras em países longínquos.

Algo precisa ser feito. Não podemos mais esperar que a força espontânea do nosso enfraquecido futebol resgate a esquecida arte de jogar futebol brasileiro. Também não podemos esperar que as mãos que enfraqueceram e sugaram o nosso futebol automaticamente se encarreguem de reerguê-lo.

Precisamos de uma política pública robusta para o futebol. Como os alemães fizeram, precisamos desenvolver programas de formação de talentos. As ruas não cumprem mais essa função e os clubes não investem nisso como deveriam. Temos também de combater os ilícitos, como a lavagem de dinheiro, que assolam esse setor. O monopólio midiático das transmissões também é algo a ser revisto. Clubes com gestão financeira e administrativa amadorística precisam se enquadrar nas leis.

E necessitamos fazer isso não porque fomos vergonhosamente derrotados pela Alemanha, nesta última Copa. Precisamos fazer isso porque o futebol brasileiro agoniza há bastante tempo. Estamos sendo goleados há muito tempo pelo descompromisso e pela incompetência dos dirigentes do nosso futebol. Esse é o grande vexame.

Na realidade, a modernização da estrutura do futebol já estava prevista no programa da presidenta, antes da realização da Copa de 2014. A derrota acachapante apenas tornou mais visível e urgente a necessidade da reforma do nosso futebol.

Há muitas resistências, é claro. Mal se anunciou a reforma e um político da oposição, muito ligado aos interesses da CBF, acusou a presidenta de tentar criar a Futebras. Evidentemente, não se trata de estatizar o futebol, mas sim de combater a Futebrax incompetente e corrupta que vive da exportação e da dilapidação de nossos talentos. Essa Futebrax envolve interesses políticos e econômicos poderosos. Será uma luta muito dura.

Luta dura, mas necessária. O futebol, esse extraordinário patrimônio do Brasil, precisa ser defendido. Ele é meu, ele é seu, ele é de todos nós.

Quero o meu futebol de volta. Devolvam o meu futebol.

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