Artigo: Golpes Lentos e Digitalizados

Assessor técnico da Liderança do PT no Senado afirma que o golpismo não desapareceu da América Latina; mudou de forma. Hoje, um vale-tudo político dispensa a quartelada típica e se concentra em meios mais sutis e métodos mais capciosos


O golpismo tem uma longa e vasta tradição na América Latina. Foram tantos os golpes e as quarteladas que nos tornamos sinônimos de regimes instáveis e autoritários. A expressão pejorativa “republiqueta de bananas” surgiu justamente desse triste hábito que ceifava todas as jovens e frágeis democracias que se atreviam a nascer nesse solo político árido de sociedades extremamente desiguais.

Com as democracias e as liberdades, ceifavam-se também vidas. Milhares foram torturados, presos ou assassinados. Outros tantos foram convenientemente “desaparecidos”. Tudo isso realizado ao abrigo da “defesa da democracia” contra o “comunismo”, e com o apoio, velado ou aberto, dos EUA.

Muitos acreditam que, felizmente, o golpismo já faz parte de um passado distante e um tanto folclórico. Seria apenas vaga lembrança dos tempos da Guerra Fria. Não é bem assim. Há pouco mais de 10 anos, em 2002, tivemos um golpe clássico, uma típica quartelada, na Venezuela. O golpe durou 3 dias e foi revertido pela população, que marchou às ruas para defender o governo popular de Chávez, e por setores das forças armadas leais à constituição, que impediram o assassinato do presidente eleito.

No Brasil, setores da mídia chegaram a aplaudir o golpe contra o “caudilho populista”. Depois, tiveram de engolir, com mal disfarçada decepção, a reversão da quebra da ordem democrática. O mesmo aconteceu com o governo dos EUA, que, em perfeita sintonia com sua robusta folha corrida na região, deu pronto apoio aos golpistas. Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia, chegou a escrever um artigo furibundo classificando a atitude do Departamento de Estado de “estúpida”. E era.

Porém, não parece ter adiantado muito. De lá para cá, não houve novos golpes clássicos, com o seu habitual desfile de militares carrancudos, títeres civis com ar bovino e mídia estrondosa e histérica apoiando, com notável desprezo pelas instituições e pela lógica, a quebra da ordem democrática em nome da democracia. Mas houve, em Honduras e no Paraguai, golpes, por assim dizer, “institucionais” e “brancos”, até o ponto em que uma coisa tão tenebrosa pode ser branca. Os militares faltaram, pelo menos de forma ostensiva, mas o conluio de líderes civis conservadores, empresários reacionários, mídia oligopolizada e partidarizada, e justiça, assim digamos, pouco isenta resultou na queda de presidentes populares, ao arrepio da ordem constitucional.

Assim, o golpismo não parece ter desaparecido completamente da América Latina. Mas, sem dúvida, mudou de forma. Em sua forma mais “evoluída”, dispensa a quartelada típica e se concentra em meios mais sutis e métodos mais capciosos.

Claro está que, numa democracia, governos e presidentes podem cair antes do término do mandato. Para isso, no entanto, há todo um processo constitucionalmente previsto, em minúcias, que deve ser respeitado. No Brasil, há cerca de duas décadas, tivemos um belo exemplo de como tal processo tem de ser conduzido. Com efeito, no caso do presidente Collor, acusado de corrupção, houve uma CPI para averiguar as denúncias, seguida de uma sequência de manifestações estudantis pacíficas e de um processo de impeachment que respeitou todos os parâmetros constitucionais previstos, inclusive os relativos ao amplo direito de defesa. Após cerca de 5 meses, tal processo levou à renúncia do presidente.

Ninguém cometeu violências, ninguém tentou queimar o Itamaraty, ninguém tentou impedir alguém de participar das passeatas. Ninguém depredou patrimônio público, ninguém morreu. Foi uma edificante demonstração de cidadania e civilidade, que fortaleceu a democracia e suas instituições.

Em contraste, na Venezuela de hoje há de tudo, menos demonstrações de cidadania e civilidade. Irritado com a acachapante vitória do chavismo nas últimas eleições municipais, realizadas há pouco mais de 2 meses, Leopoldo López, o flamante, em sentido literal, líder da direita venezuelana, resolveu escantear Capriles, que aposta na via democrática para enfrentar o chavismo, e lançar uma campanha para apear o presidente eleito Maduro, custe o que custar.

Instalou-se um vale–tudo político, apelidado eufemisticamente de La Salida. As passeatas sempre resultam em grave violência, com direito aos incêndios de prédios públicos, à depredação do patrimônio popular e à infiltração de grupos armados, que têm por objetivo produzir mártires e semear pânico e confusão. Ao mesmo tempo, grupos empresariais escondem alimentos e gêneros de primeira necessidade para forçar a carestia, um velho estratagema que o Chile de Allende conheceu muito bem. Ao fundo, toca a banda estridente e organizada da mídia partidarizada, insuflando estudantes de classe média contra o “tirano”. Na internet, o território livre da NSA, há disseminação abundante e constante de toda sorte de mentiras contra o governo, com a oportuna transformação de vítimas, sírias, iraquianas e ucranianas em cidadãos venezuelanos imolados no altar do mal chavista.

O objetivo de López não é pressionar por um impeachment constitucional e democrático de Maduro. Ele sabe que isso é impossível, pois o presidente eleito tem apoio popular e seu grupo político, por sua vez, não tem votos suficientes no Legislativo. Não.  A sua estratégia declarada e explícita é a do “golpe lento”, ou seja, manter a violência e a confusão nas ruas para criar um clima constante e insuportável de medo e insegurança, que acabe levando, seja de que modo for, com ajuda dos “estúpidos” de sempre, à queda de Maduro.

Trata-se de evidente e nova ameaça à democracia da Venezuela, que vai além da quartelada típica. Não é o golpe clássico, mas é golpe mesmo assim.

Entretanto, o caso da Venezuela revela também uma tendência ideológica preocupante que ameaça às democracias do continente. Trata-se da negação da legitimidade do voto popular e, por consequência, da democracia representativa e suas instituições. Com efeito, há tentativas recorrentes, na região, de negar real representatividade política às manifestações das urnas. As únicas manifestações que teriam legitimidade seriam as “manifestações das ruas”, que, de acordo com alguns, põem “as coisas em seu devido lugar”. Os votos e as instituições deles derivadas também não teriam legitimidade e relevância, em comparação com a ação “direta” e “espontânea” das redes sociais. A democracia representativa perdeu sua validade, o que tem legitimidade é a democracia participativa.

Na Europa, onde essa tendência nasceu, ela tem um caráter nitidamente progressista, em função da incapacidade dos sistemas políticos de darem resposta mínima às insatisfações geradas pela grave crise econômica e social. Na nossa região, contudo, ela surge justamente no momento em que os chamados governos do pós-neoliberalismo tentam ampliar o restrito escopo das democracias locais, promovendo a ascensão social e política de milhões de cidadãos antes excluídos.

Na Venezuela, por exemplo, a gigantesca e bem-sucedida luta do chavismo contra a miséria, a desigualdade e o analfabetismo combinou-se com um grande esforço para tornar o sistema político, antes inteiramente dominado por uma pequena elite, permeável aos interesses dos mais pobres. Hoje, a Venezuela tem um sistema político no qual, bem ou mal, pela primeira vez na história do país, os interesses da população da base da pirâmide estão minimamente representados. Nesse contexto regional e histórico, questionar a legitimidade do voto popular, tachando-o, como fazem muitos, de voto “inconsciente” e “comprado” é, mais do que algo regressivo, uma coisa francamente reacionária.

No Brasil, também não faltam aqueles que dizem que o voto nos governos do PT não tem legitimidade, pois seria um voto obtido graças à ação democraticamente deletéria de programas sociais. Já houve até propostas, nas redes sociais, de cassação de títulos eleitorais dos cidadãos que recebem Bolsa-Família. Quiseram ressuscitar a Tese Pelé, “o povo brasileiro não sabe votar”, que fez tanto sucesso na ditadura. Coisa de quem vem sendo seguidamente derrotado nas urnas.

É obvio que as manifestações populares, convocadas ou não pelas redes sociais, podem e devem funcionar como vital fator oxigenador das democracias representativas. Mecanismos inovadores de democracia participativa também podem e devem aprimorar as democracias representativas.  Mas isso é algo inteiramente diferente de apresentar ruas como sucedâneas de urnas e participação como substituta de representação. Essa tendência só beneficia quem não tem votos nem interesse real no aperfeiçoamento das democracias do continente.

Em nosso país, quem tem real interesse na mudança do sistema político e no aprofundamento da democracia apoia algum tipo de Reforma Política. Quem não tem, repete os velhos mantras contra o voto popular e as instituições democráticas, com o novo e desafinado fundo musical que surgiu de uma mal digerida e mal entendida partitura da sociedade em redes.

E quem não tem votos, nem perspectivas de obtê-los na escala necessária, vai continuar apostando em violência e caos nas ruas, e não em manifestações democráticas pacíficas, com objetivos racionais e concretos. Nesse sentido, o “Não Vai Ter Copa” significa, no fundo, “Não Vai Ter Democracia”.

Não tem mais golpe abrupto e analógico, mas não faltarão as tentativas de golpes lentos e digitalizados.  

 

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