Crise nos EUA:o que significa ser o número 1? – Por David J. Rothkopf

Na América, parece que estamos mais interessados em chegar na frente do que em perceber que corrida estamos disputando. A ladainha é onipresente, seja nos discursos de Obama ou do mais simples americano, não importa sua coloração partidária: “Precisamos construir — ou , ou educar, ou investir, ou reduzir o défcit—para que a América volta e ser a Nº 1”.

Nós queremos ser Nº1—mas para quê? Em quê?

O tamanho da nossa economia é um indicador de sucesso, mas não é a única medida. A pergunta não deveria ser como continuar sendo Nº1, mas no quê queremos ser melhores—e se queremos ser melhores.

Mas nós somos americanos e, para nós, o mundo sempre parecerá melhor quando visto pelo retrovisor.

Nós superamos o mundo em muitas medidas. Mas nos arrastamos, às vezes escandalosamente, em muitos outros aspectos. Os parâmetros que usamos para mensurar nosso sucesso determinam nossas prioridades. Entretanto, parâmetros que reputamos como mais importantes, como o PIB, por exemplo, ou índices das bolsas, ou do comércio, são tão profundamente falhos que podem tornar-se irrelevantes ou pior: podem converter-se em perigosas distorções.

Enquanto isso, países que dificilmente esperariam destaque internacional sob qualquer aspecto estão muito a frente dos EUA em questões que importam mais para as pessoas.

A escolha de parâmetros para avaliar a nossa sociedade não é um processo neutro. Historicamente, os EUA têm contado com os indicadores que nos mantêm focados nos interesses dos negócios, das instituições financeiras ou na defesa da indústria, enquanto a superação das desigualdades, a qualidade de vida e mesmo a mobilidade social são subestimadas.

O cálculo da renda nacional é um conceito relativamente novo. Antes, os países mediam seu bem estar econômico computando o número de imóveis ou vagões de carga. Em plena Grande Depressão, o Congresso Americano — demonstrando muito mais curiosidade intelectual do que hoje em dia — encarregou a um grupo de economistas, liderados pelo então futuro Prêmio. Nobel Simon Kuznets, para  aperfeiçoar os instrumentos de medição da atividade econômica.

Ainda que Kuznets e sua equipe tenham cumprido sua missão, eles divulgaram seus resultados com considerável desconforto. Além de terem consciência de que a estatística por eles construída ignorava muitos aspectos da atividade econômica — desde o trabalho das donas de casa às atividades ilegais — eles também sabiam que os números divulgados não expressavam os benefícios sociais decorrentes da atividade que buscaram medir.

Kuznets, à época, alertou: “O bem estar de uma Nação é pobremente auferido por meio da medição da renda nacional”. Isso, porém, não impediu os americanos de transformar esse enganoso parâmetro no indicador talvez mais influente do planeta.

Os números do PIB têm embasado as discussões sobre o atual estágio da nossa economia. Eles estão no cerne do debate sobre estarmos ou não em recessão, se estamos avançando ou ficando para trás. Entretanto, a China que nos “ultrapassa”, segundo esse critério, continua a ser, em grande parte, um país muito pobre, atormentado por problemas sociais.

Além disso, embora a última década tenha sido marcada basicamente por um “crescimento” dos EUA, os Censos realizados de 1999 para cá mostram que a renda do americano médio caiu mais de 7%, enquanto a os 1% mais ricos tiveram crescimento de renda. Uma em cada quatro crianças americanas vive na pobreza. E temos uma lata taxa de desemprego, comparados com os nossos parceiros.

O culto ao PIB, porém, não é o único vilão. Qualquer um que assista o noticiário tem a impressão de que o desempenho das bolsas tem alguma relação com a realidade. Mas os mercados são oceanos fervilhantes de emoções — capazes de fazer qualquer adolescente com hormônios em ebulição parecer sereno e racional— movidos, a maior parte do tempo, por “informações” que não passam de tolices.

O déficit comercial pode ser assustador, mas ele é também assustadoramente falho em sua tarefa de medir a movimentação em serviços, as vendas pela internet, as transações entre empresas, para citar apenas três áreas.

Pior que as falhas dessas estatísticas são as conseqüências da nossa hiperdependência delas para medir o sucesso da nossa sociedade. Um país que, por exemplo, dê excessiva ênfase ao crescimento do PIB e ao desempenho do mercado está mais propenso a concentrar suas políticas nos grandes indutores desses números—grandes corporações e instituições financeiras—mesmo quando, como no passado recente, há pouca relação entre o desempenho dos grandes negócios e da elite com a vida da maioria das pessoas.

Além disso, claro, o propósito de uma sociedade não é meramente a criação de riqueza, especialmente se a maior parte dessa riqueza fica concentrada na minoria. Mesmo John Locke — que enumerou como nossos direitos fundamentais a vida, a liberdade e a propriedade — lembrava que as pessoas deveriam acumular apenas os bens que pudessem usar, deixando “o suficiente e o mesmo tanto” para os demais. Mais tarde, Thomas Jefferson substituiria o direito à propriedade pelo direito “à busca da felicidade”. E é exatamente felicidade a senha usada pelos que buscam novos parâmetros e indicadores capazes de guiar os governos por melhores rumos.

Segundo a economista Carol Graham, autora do recente “A Busca da Felicidade: Uma Economia do Bem Estar”, “felicidade é um conceito muito mais complicado que o conceito de renda. Ainda assim, a sua busca se constitui num objetivo político muito mais louvável e ambicioso.”.

Ela reconhece as diferenças de pontos de vista sobre o que seria “felicidade”— algumas sociedades privilegiam a noção de “satisfação”, enquanto outras focam na criação de igualdade de oportunidades –  mas Graham engrossa o coro dos pensadores para os quais chegou a hora de repensar nossas formas de medir o desempenho das nossas sociedades e como definimos nossas metas.

Esse diverso grupo de pensadores e figuras públicas inclui o presidente francês Nicolas Sarkozy — que criou uma comissão para estudar a questão, em 2008—, além do Nobel de Economia Joseph E. Stiglitz; do economista Jeffrey D. Sachs, da Columbia University: do primeiro ministro britânico David Cameron; e pelo povo do Butão que, desde 1972, estabeleceu como meta nacional o “aumento da felicidade nacional”.

A doutora Graham admite o desafio de estabelecer critérios para medição da felicidade. Entretanto, numa conversa, ela me disse que não vê a felicidade como imensurável. “Os indicadores não precisam ser perfeitos, afinal, levamos décadas para definir quais os componentes entrariam no cálculo do PIB e, até hoje, esse indicador continua longe da perfeição”.

Mas para os americanos, mais importante que definir a melhor meta continua sendo a questão de “ser o Nº 1”. Estamos acostumados a viver num país que sempre se viu como o mais poderoso e bem sucedido do planeta. Mas com a economia dos EUA paralisada e a China em ascensão, esse tempo está ficando para trás.  Estamos sofrendo uma crise de identidade nacional e os políticos disputam entre si para ver quem oferece a melhor receita para o retorno à velha e familiar “liderança”.

Essa postura é complicada: como país desenvolvido, é pouco provável que os EUA alcance taxas de crescimento similares às das potências emergentes (os Estados Unidos ocupa o 127º lugar no ranking do crescimento real do PIB). A Europa e o Japão, também economias consolidadas, enfrentam problemas similares.

Mas economias consolidadas podem oferecer a seus cidadãos muitos benefícios que não estão disponíveis para esse mundo que cresce mais rápido—o fruto das riquezas culturais e educacionais, a eficiência das instituições, estabilidade e prosperidade.

Como consequência, países que em diferentes momentos históricos já figuraram entre as grandes potências—como a Suécia, a Holanda, a França, a Grã-Bretanha e a Alemanha—foram gradualmente mudando seus focos, tanto na ressaca de uma derrota quanto no curso de prolongado declínio. Da disputa pelo prêmio de “superpotência” esses países migraram para a busca de melhores posições na lista dos países que oferecem melhor qualidade de vida a seus povos.

Quando a revista Newsweek estabeleceu um ranking dos “melhores países do mundo” com base em critérios como saúde, educação e políticas públicas, os Estados Unidos foi listado em 11º lugar. No “Índice de Qualidade de Vida entre Países”, de 2001, os EUA aparecia como o 31º. Da mesma forma, no ranking das melhores cidades do mundo para se viver a Economist Intelligence Unit aponta a melhor colocada entre as cidades americanas no 29º lugar. Na Pesquisa Mersey de Qualidade de Vida, a cidade Americana com melhor classificação aparece na 31º posição. A revista Monocle lista apenas três cidades americanas entre as 25 melhores do planeta.

Em cada uma dessas listas, os melhores colocados concentravam-se maciçamente no Norte da Europa, na Austrália e no Canadá, com significativas amostras no Leste da Ásia, do Japão a Cingapura. Não é coincidência que os países com melhor desempenho nesses rankings sejam os mesmos que superam os Estados Unidos no desempenho educacional—ressalvando-se que seria um equívoco enfatizar individualmente qualquer um dos fatores considerados na medição de algo tão complexo quanto o conceito de qualidade de vida. Quase todos os líderes mundiais em qualidade de vida são também países que investem mais que os EUA em infraestrutura.  Além disso, quase todos têm mais consciência ambiental e oferecem a seus cidadãos uma rede mais inclusiva de seguridade social e saúde que os Estados Unidos.

Também é inegável que praticamente todos os países mais bem colocados que os EUA dão muito mais ênfase ao papel do Estado na garantia do bem estar social. Mas se colocarmos de lado as diferenças de orientação política, é o foco desses governos nos resultados sociais—nas políticas que reforcem a satisfação e a segurança assim como o enriquecimento das capacidades e oportunidades—que se destaca como sinal de maturidade.

Também não vale dizer que assegurar a base para uma alta qualidade de vida seja fórmula para excessos ou para calamidades econômicas que assolam alguns países da Europa, atualmente. A maioria dos países no topo dos rankings de qualidade de vida, como a Suécia, Luxemburgo, Dinamarca, a Holanda e a Noruega figuram também no topo  da lista das nações com maior responsabilidade fiscal, bem à frente dos EUA, o 28º colocado no Índice de Responsabilidade Fiscal.

O que essas sociedades têm em comum é que, em vez de empenharem-se em serem as maiores, aspiram, sim, a se tornar cada vez melhores. No fim das contas, há um antídoto tanto para a obsessão pelo “declínio” quanto para o culto insensível ao crescimento: é reconhecer que “ficar para trás” ou atingir novos píncaros são meras questões de que metas estabelecemos e por quais critérios medimos nosso desempenho.

Versão original do artigo

David J. Rothkopf, cientista social, autor de “Superclasse”

Artigo publicado no The New York Times de 09/10/2011

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