Filhos da resistência – Por Alexandre Padilha

Como Ulysses, tenho ódio e nojo da ditadura. Mas não carrego ressentimento. A infância incomum me proporcionou valores firmes

Eu estava prestes a completar oito anos de idade quando abracei meu pai pela primeira vez.

Até então, a ditadura nos havia mantido afastados. Meu pai ficou 11 meses sob tortura. Um tempo depois de sair da prisão, teve de partir para o exílio, quando minha mãe já estava grávida de mim.

Depois da anistia, ele pôde voltar ao Brasil. Foi quando o vi chorar pela primeira vez.

Até os três anos, não tive endereço permanente –para escapar da repressão, minha mãe, que também militava em grupos de contestação à ditadura, mudava-se constantemente. Fui, como tantas outras, uma das crianças da resistência.

Muitos são os significados de ser filho de pais da resistência, separados pela ditadura. Em primeiro lugar, por força das circunstâncias, ganhei uma consciência política de maneira tão precoce quanto natural. Desde muito cedo, tinham de me explicar o que era ditadura, o que era a luta pela democracia, para compreender a distância do meu pai.

Aos quatro anos de idade, minha avó paterna me ensinou a ler e a escrever para poder me comunicar com meu pai. Nas cartas e presentes que chegavam, vivi um pouco da sua vida no exterior. Soube que ele falava outra língua, convivia com outra realidade e fui informado de que tinha ganhado uma madrasta americana, um irmão e depois outro. Pude abraçar minha madrasta anos antes de poder abraçar meu pai e meus irmãos.

Nas cartas que enviava, dividi com ele minha infância no Butantã, o bom desempenho escolar, o fim dos 23 anos de fila do Corinthians no Campeonato Paulista de 1977 e as férias no litoral com minha mãe e meu padrasto. Sabia que essa separação entre pai e filho era consequência de um regime ditatorial, que nos priva da liberdade, que persegue e mata quem tem ideias diferentes.

Também vivi histórias engraçadas. Nos comunicávamos muitas vezes por fitas cassetes, que amigos levavam e traziam. Foi assim que ouvi pela primeira vez a voz dos meus irmãos e eles a minha.

Um dia, quando já tinha mais de dez anos e meu pai tinha voltado para o Brasil, estava jogando bola no quintal da casa da minha avó, meu irmão mais novo perguntou: “Ô, Alexandre, como você jogava futebol quando vivia naquela caixinha?”. A caixinha era o gravador e, na inocência de um garoto de quatro anos, era lá que o irmão dele morava, porque era daquele alto falante que saía a sua voz.

Como outras crianças da resistência, tive o privilégio de ter uma família muito ampla. Tenho incontáveis tios da resistência –aqueles solidários amigos e amigas da minha mãe e do meu pai. Eram pessoas que se arriscavam para levar e trazer essas cartas e fitas cassetes, sabedores do valor do diálogo entre um pai e seu filho, entre os irmãos, entre as famílias. Gente que nos acolhia com afeto, que nos protegia nas piores horas porque compartilhava o sentimento de viver perseguido, censurado, agredido. Sou grato a eles.

Como o doutor Ulysses Guimarães, também tenho ódio e nojo da ditadura. Mas não carrego ressentimento. Conto essas histórias com leveza. Tive uma infância incomum, e ela me proporcionou valores firmes: acredito nos benefícios do diálogo, na liberdade de imprensa e opinião, na possibilidade das pessoas reverem suas posições, no valor dos partidos, na capacidade transformadora da sociedade civil.

Vivi a campanha da anistia, as Diretas-Já e fui às ruas como líder estudantil cara-pintada para tirar um presidente da República do poder pela força da democracia.

Ao lutar pela democracia, meus pais ergueram biografias que os engrandecem. Tenho orgulho da vitória que eles ajudaram a construir.

Alexandre Padilha, 42, é médico. Foi ministro das Relações Institucionais (governo Lula) e ministro da Saúde (governo Dilma Rousseff)

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