De Platão a Cunha – a negação da política abre espaço para a desfaçatez

De Platão a Cunha – a negação da política abre espaço para a desfaçatez

Em novo artigo, a assessora da Liderança do PT no Senado, Tania Maria de Oliveira, escreve sobre os estarrecedores acontecimentos que marcaram o trabalho da Câmara dos Deputados na apreciação do projeto de redução da maioridade penal.

A palavra e sua antítese

Na democracia ateniense as decisões dependiam do encantamento e convencimento produzidos pelo discurso. Retórica era a arte de persuadir na máxima aristotélica, uma virtude essencial para os sofistas.

Platão, ao estabelecer suas críticas à retórica, a identificou com a manipulação da verdade pelos sofistas. Em um modelo platônico, a comunicação tem compromisso com a verdade das coisas e procura revelar a essência do tema discutido. O orador respeita o público como um ser racional, capaz de considerar, ponderar, avaliar, mensurar a mensagem transmitida, ao invés de aceitá-la passivamente.

Como arte da argumentação, a retórica é uma fórmula válida da democracia necessária à persuasão, como forma de superar conflitos que não estão dispostos pela ordem da verdade. Quando a palavra entra em um jogo artificial para fazer valer a “minha” vontade, é a democracia que perde e é nesse momento que se impõe o cinismo como regra.

O debate político pode ser algo poderoso se feito com respeito e profundeza. Quando não é possível o convencimento pelos melhores argumentos, sempre se podem realizar pactos em torno de soluções intermediárias. Em franco acordo, os debatedores podem manter suas posições e ceder em parte para superação de impasses.

Na atual legislatura, com a chegada de Eduardo Cunha à presidência, a Câmara dos Deputados tornou-se o que se pode chamar de deserto de ideias, cuja pauta é definida pelos objetivos particularistas, marcada pela desfaçatez e desmandos explícitos de seu presidente.  A palavra desponta como caminho para a dissolução de todos os compromissos e o debate vira uma caricatura de suas virtuosas possibilidades. A “era Cunha”, com apenas seis meses de existência, já se configura como aquela marcada pela transformação da pauta legislativa em triunfo do reacionarismo, em franca tendência anti-humanista, dando luz ao fundamentalismo religioso, à homofobia, ao populismo penal e ao desprezo pela democracia.

Os recentes processos de votação da PEC do financiamento das campanhas eleitorais por empresas e da PEC da maioridade penal em que, após ter sua posição derrotada, decidiu por nova votação 24 horas depois, dão conta de que não há medidas para o pragmatismo e autocracia de Eduardo Cunha, deixando a impressão a todos que acompanharam o processo de que “tudo é possível” somente pela definição de maioria de votos. Maioria, aliás, conformada por meio de processos altamente questionáveis, segundo relatos dos deputados no plenário da Câmara.

Logo, o que está em questão não é o conteúdo das propostas votadas necessariamente. Todos os cidadãos que acreditam na democracia deveriam estar atentos para o que acontece na Câmara dos Deputados.

A forma autoritária e em total desrespeito ao processo legislativo e à Constituição Federal adquiriram a dimensão de uma postura totalmente distanciada da razão, uma irresponsabilidade política até então não conhecida no parlamento brasileiro. Desse modo, a “era Cunha” aparenta ficar marcada como aquela em que houve a negação da democracia, em que a palavra é a antítese da retórica, funcionando como imposição do poder de mando por mecanismos nada republicanos, grifada por sofismas de aparente

legitimidade, tão superficiais que não resistem a uma primeira observação.

Resta saber quais são os limites do presidente da Câmara dos Deputados e até onde vai a disposição de seus pares à sua sustentação política e cumplicidade.

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