Há escolhas a fazer – artigo do diretor da FAO, José Graziano da Silva

Graziano: “As adaptações às condicionalidades econômicas do caminho são inerentes ao processo. É disso que se trata novamente agora na América Latina”O diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO, sigla em inglês), José Graziano da Silva, em artigo publicado no jornal Valor Econômico nesta segunda-feira (9/3), defende a manutenção dos compromissos de governos da América do Sul e do Caribe, no combate à fome, num complexo cenário econômico internacional que está desafiando a preservação e a expansão de políticas de segurança alimentar.

“Flancos estruturais ainda não superados nessa etapa do pêndulo, que agora se inverteu, não diminuem a importância do rumo tomado. Os compromissos com o combate à fome e a desigualdade social se incorporaram às referências da região, tornando-se dificilmente reversíveis, apesar da adversidade do cenário global iniciado em 2008 e que atingiu a América Latina, com maior impacto, a partir de 2012”, discorre.

Graziano relata, em seu texto, que ao invés de ressuscitar, no momento de dificuldade, antigas fórmulas em que a exclusão ocupava o motor, a FAO defende, de forma imperativa, a inclusão, para garantir o “chão firme” aos mais vulneráveis e, assim, evitar o reaparecimento da miséria e da fome.

Além disso, defende que os governos, se puderem escolher, optem pela compra de alimentos de agricultores familiares. “Providenciem as políticas para que ela possa produzir em escala e qualidade crescentes”, defende.

Leia, a seguir, a íntegra do artigo:

A América Latina ousou nos últimos anos traçar um novo caminho para lutar contra a fome e a desigualdade, transformando-os em ingredientes constitutivos do processo de geração da riqueza, não em seu corolário.

Não se trata, é notório, de uma fórmula da prateleira técnica. O que se viu foi uma convergência de oportunidade internacional e determinação política que catalisou iniciativa e programas escrutinados em décadas de urgências e demandas inarredáveis.

Como acontece quase sempre na história, a natureza reordenadora de um ciclo desse tipo, marcado por avanços sociais básicos, requer um tempo de decantação feito de repactuações e ajustes sucessivos, até que a estrutura da economia adeque seu dinamismo ao novo rosto da sociedade.

A título de ilustração, é possível dizer que essa conta de chegar tem sido a força motriz da trajetória brasileira desde o salto de cidadania instituído na Constituição de 1988.

As adaptações às condicionalidades econômicas do caminho são inerentes ao processo. É disso que se trata novamente agora na América Latina.

Em um complexo cenário internacional, a economia regional está sendo desafiada a preservar – e a expandir – avanços significativos que passaram a calafetar as fendas mais fundas do seu fosso social.

Flancos estruturais ainda não superados nessa etapa do pêndulo, que agora se inverteu, não diminuem a importância do rumo tomado. Os compromissos com o combate à fome e a desigualdade social se incorporaram às referências da região, tornando-se dificilmente reversíveis, apesar da adversidade do cenário global iniciado em 2008 e que atingiu a América Latina, com maior impacto, a partir de 2012.

O fato é que, desde 2002, 58 milhões de latino-americanos ultrapassaram o limiar da pobreza e 28 milhões superaram a miséria.

No mesmo período, 23 milhões de pessoas deixaram para trás a servidão da fome na América Latina. Esse avanço garante que em, seu conjunto, a América Latina já tenha alcançado a ousada meta da Cúpula Mundial de Alimentação de reduzir pela metade o número total de pessoas subalimentadas entre 1990 e 2015.

Definitivamente, não é um feito descartável.

Desde 2012, porém, o ritmo da caminhada perdeu força e 28% do contingente regional estacionou na fila de espera da cidadania: 167 milhões de pessoas, o equivalente às populações da Alemanha, França, Portugal e Grécia juntas, seguem vivendo abaixo da linha da pobreza, e 30 milhões de latino-americanos ainda sofrem de fome. Aí persiste o círculo vicioso da pobreza e da exclusão.

Esse é o pano de fundo. Ou o copo de água pela metade. Sobre esse saldo incide a transição do ciclo econômico global, que atingiu a economia da região pelo canal do comércio exterior.

Enquanto o volume das trocas internacionais cresceu 3,3% no ano passado, o saldo latino-americano exibiu um avanço inferior a 2% (contra 5%, em 2013). Do lado dos preços, o revés não foi menor: a região foi diretamente atingida por um recuo médio da ordem de 5,5% nas cotações das commodities em 2014.

O acompanhamento da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) constata o efeito adicional desse baque nos preços dos alimentos, que favorece o custo de vida urbano, mas subtrai renda dos agricultores mais descapitalizados, que não conseguem lucrar na escala e na produtividade. Em fevereiro, o indicador de preços da FAO caiu ao menor patamar desde julho de 2010, atingido o menor valor em 55 meses.

O horizonte regional, portanto, mudou; a mudança impacta o modelo de desenvolvimento inclusivo adotado e adequações são necessárias. Mas ressuscitar antigas fórmulas, em que a exclusão ocupava o motor ora assumido pela mola inclusiva, não pode ser uma opção.

A FAO, ao contrário, considera que é justamente nessa hora que a política pública se torna imperativa para prover o chão firme aos mais vulneráveis, evitar a recidiva da miséria e da fome e abrir novas frentes de emancipação.

Há um protagonista capaz de se erguer a partir de um impulso inicial que o capacite a gerar inclusão, renda, oferta, segurança alimentar e dinamismo local, devolvendo em dobro o investimento público requerido no início do processo. Seu nome é agricultura familiar, mas o sobrenome não é bala de prata, e tampouco se encontra disponível também na prateleira técnica.

É preciso uma decisão política para ativar seu imenso potencial, a exemplo da demanda cativa criada no Brasil, que vincula 30% do orçamento da merenda escolar a aquisições de produtos locais da agricultura familiar.

Os efeitos multiplicadores de uma diretriz desse tipo são presumíveis a partir das cifras que dimensionam o tamanho da alavanca que ela pode mover.

Na América Latina e no Caribe, existem mais de 16 milhões de estabelecimentos típicos da agricultura familiar – boa parte na linha de frente das vítimas potenciais dos ciclos recessivos.

Não estamos falando de uma miragem, mas de uma estrutura capilar. Ela abrange 81% das explorações agrícolas da região, gera entre 55% a 77% do emprego rural e produz boa parte dos alimentos que chegam à mesa dos consumidores latino-americanos e caribenhos.

Não por acaso, na XXXIII Conferência Regional da FAO, realizada no Chile, em 2014, representantes de governos apontaram a agricultura familiar como um setor-chave para os tempos que se anunciavam. É hora de dar a essa constatação a sua consequência prática. A experiência da FAO recomenda aos governos que se tiverem que escolher um ponto de partida capaz de arrastar todos os demais, não hesitem: comprem da agricultura familiar e providenciem as políticas para que ela possa produzir em escala e qualidade crescentes.

Artigo publicado na edição do dia 09/03/2015 do jornal Valor Econômico

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