Há exato um ano atrás o país e o mundo assistiram ao espetáculo dantesco da votação de admissibilidade do pedido de impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff no plenário da Câmara dos Deputados. Uma sessão vergonhosa, destacada até mesmo pela imprensa conservadora do mundo, a exemplo da revista inglesa The Economist, que ironizou os motivos alegados pelos parlamentares brasileiros para votar a favor do afastamento.
Os bizarros e oportunistas discursos, cujo mantra eram as falsas reprovações à corrupção, ficaram marcados pelas homenagens, que transitaram de um torturador militar até todos os membros das famílias, passando por amigos, médicos, estradas, corretores de seguros, maçons, cidades e personagens afins. Tudo feito com ares de festa. Um circo de horrores, que denunciou a acentuada ausência de republicanismo de larga parte dos membros da Câmara Baixa do parlamento brasileiro. Uma sessão que maculou para sempre a democracia no Brasil.
Um ano que passou depressa. Sobretudo se pensarmos que nesses 12 meses o Congresso Nacional aprovou, por iniciativa do governo que assumiu o poder, uma emenda à Constituição Federal que congelou os gastos públicos por vinte anos; uma lei iniciada por medida provisória que modificou o sistema de ensino médio sem nenhum compromisso com debate e aprofundamento, sob o protesto de estudantes e de toda a comunidade acadêmica; um projeto que dormitou por dezenove anos, que terceiriza e precariza a atividade fim do trabalho.
Tempo, ainda, em que Temer, o presidente sem votos, enviou 49 medidas provisórias para o Congresso sobre todos os temas possíveis e uma proposta, ainda em tramitação, que altera as regras previdenciárias na Constituição; tempo em que a prometida redução do número de ministérios para “enxugar a máquina pública” foi, na prática, desmentida; em que trocou oito dos ministros, todos por acusações em desvios, tendo outros oito investigados na operação Lava Jato.
[blockquote align=”none” author=””]Curiosamente, Temer narra e reafirma a alegação feita pela defesa da presidenta eleita durante todo o período de julgamento – jurídica e politicamente falando – de chantagem, que demonstra cabalmente o desvio de finalidade, evidenciando que o impeachment nada teve a ver com pedaladas fiscais ou decretos de suplementação, sendo esses fundamentos meros artifícios para viabilizar um golpe parlamentar[/blockquote]
A celeridade se expressa também ao lembrarmos que menos de cinco meses depois daquele dia de lástima, a ação se concretizou com a votação final do impeachment no Senado; que Eduardo Cunha foi afastado da presidência da Câmara, cassado, condenado e preso; paralelamente, o procurador Dallagnol e sua trupe do Ministério Público do Paraná expuseram a instituição ao maior grau de idiotice já visto, com um PowerPoint que virou gozação na internet; o japonês que prendeu todo mundo foi preso por facilitar contrabando; a polícia federal, em suas ações de enfrentamento desarticulou a exportação de carne do Brasil, atingindo os quase cinco mil frigoríficos por investigar 22 deles; médicos apareceram nas redes sociais divulgando dados sigilosos, desejando a morte da ex-primeira dama Marisa Letícia, quando ainda estava viva em estado grave em um hospital; que Sérgio Moro atingiu a marca de 205 conduções coercitivas na operação Lava Jato sem expedir um só mandado de intimação antes de efetuá-las, dentre elas de um blogueiro, de quem quebrou o sigilo da fonte afirmando que ele não seria jornalista; que Alexandre de Moraes, o mais parcial e eticamente contestável dos cidadãos que já ocuparam a pasta da Justiça virou ministro do STF.
Diante da velocidade e volume dos fatos, e preocupada em divulgar parte do conteúdo da delação premiada dos executivos da empresa Odebrecht, que colocou políticos de todos os partidos sob investigação, a grande mídia não deu nenhum destaque à entrevista de Michel Temer no canal de TV Band no último dia 15 de abril onde ele, de forma tranquila, como se fosse algo sem importância, narrou os detalhes de como o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha chantageou a presidenta eleita Dilma Rousseff para que o PT participasse de um pacto para salvar sua pele no Conselho de Ética daquele órgão e, tendo sido repelido, decidiu dar andamento ao impeachment.
Curiosamente, Temer narra e reafirma a alegação feita pela defesa da presidenta eleita durante todo o período de julgamento – jurídica e politicamente falando – de chantagem, que demonstra cabalmente o desvio de finalidade, evidenciando que o impeachment nada teve a ver com pedaladas fiscais ou decretos de suplementação, sendo esses fundamentos meros artifícios para viabilizar um golpe parlamentar. Dito de maneira análoga: um conflito essencialmente político foi utilizado para afastar a presidenta.
Espantoso que uma entrevista do agente político que assumiu o poder, revelando e reconhecendo como verdadeiro o vício de origem no processo de impeachment, ponto nevrálgico que foi objeto de denúncia por parte de parlamentares da base do governo e de juristas, que enfrentou o contraditório e deliberação no processo que julgou e cassou um mandato popular, e que seria causa de sua nulidade, seja tratada com naturalidade por todos, inclusive pela imprensa.
[blockquote align=”none” author=””]O processo de ruptura com aparência de constitucionalidade foi posto a nu pela palavra de um agente político que foi por ele beneficiado[/blockquote]
O processo de ruptura com aparência de constitucionalidade foi posto a nu pela palavra de um agente político que foi por ele beneficiado. Fazendo, naquele momento histórico, parte do governo, poderia o vice-presidente Michel Temer se considerar igual vítima de chantagem. A ausência de sua manifestação ao tempo dos fatos, contudo, o torna cúmplice dos atos de Eduardo Cunha.
Na entrevista mencionada, a par de querer aliviar sua conivente participação nos eventos, Michel Temer fez uma narrativa quase cínica, usada para justificar, de forma torta, o mais explícito atentado contra a soberania do voto. Assim agindo expôs o que todos sabemos, mas nunca havia sido admitido pela parte que se beneficiou da retirada do mandato de Dilma Rousseff, assumindo sua cadeira: foi golpe!