Ontem o calendário brasileiro marcou o Dia Nacional da Consciência Negra, em referência à morte de Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo do período colonial brasileiro.
Carregado de significados históricos e de símbolos, é um dia para pensar em todos os outros. O vídeo que viralizou nas redes sociais na sexta-feira, no entanto, não é comemorativo. É sobre mais um fato que nos obriga, como sociedade, à reflexão. E digo como sociedade porque escrevo do meu lugar de mulher branca, portanto privilegiada, que buscar diuturnamente educar-se no debate racial, compreendendo que meu lugar nunca será da dor, mas de uma aliada da luta.
João Alberto Silveira Freitas foi espancado covardemente até a morte na porta de um supermercado Carrefour, em Porto Alegre (RS), na noite da quinta-feira (19) por um segurança e um cliente, policial militar temporário. Seria chover no molhado se a água não fosse sangue, seria falar de mais um homicídio, merecedor de toda repulsa, se Freitas não fosse negro. E virou notícia, virou cards, virou postagens infindas, notas. Como ocorre, em regra, no mundo contemporâneo da comunicação em redes.
O racismo estrutural que perdura no Brasil é elemento essencial para que se possa compreender a violência letal contra negros e negras. A desigualdade racial não é um discurso, é um fato com elementos estatísticos precisos.
Os dados da violência no Brasil são um tapa na cara dos discursos que rapidamente desqualificam os crimes como prática de racismo, como fez no caso presente o vice-presidente da República Hamilton Mourão e a delegada Roberta Bertoldo, da 2ª Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa de Porto Alegre, que investiga o caso. Quando Hamilton Mourão afirma que: “Para mim, no Brasil não existe racismo” observa-se, no sentido da fala, uma proposital desconsideração da desigualdade de tratamento entre pessoas brancas e negras nas abordagens sociais, em qualquer espaço. Um mascaramento feito com o sedutor e comum discurso da igualdade formal, com a assertiva de que todas as vidas importam, independentemente da cor da pele, o que, por óbvio que seja, não pode desqualificar o debate de fundo nem ser posto como uma afirmação superficial e rasteira.
Talvez não tenha havido agressões verbais a Beto – como era conhecido – em razão de ser negro, se é esse o critério usado para descaracterizar o crime de racismo. Mas não é disso que se trata.
Os homicídios de pessoas negras no Brasil aumentaram 11,5% em uma década, de acordo com o Atlas da Violência 2020, divulgado no mês de agosto pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), enquanto a taxa entre não negros (brancos, amarelos e indígenas) apresentou queda de 12,9%. São direções opostas, em uma disparidade que não permite ignorância, que não deixa espaço para contemporizações.
Indignar-se pelo homicídio brutal de João Alberto precisa ter o sentido profundo que o caso nos obriga a enxergar. O combate a toda forma de violência é tarefa de todos nós. A defesa de todas as vidas ceifadas de forma torpe e brutal é fundamental. O enfrentamento à hostilidade estrutural contra pessoas negras, contudo e para além disso, se evidencia pelos indiscutíveis números de que são elas as maiores vítimas da letalidade.
Existe uma dimensão que não pode ser subtraída de qualquer avaliação que se faça das situações vividas, neste caso como em inúmeros outros, que se relaciona às características físicas de pessoas negras. O olhar que se tem a priori com conotações negativas por estereótipo e preconceito, que constrói uma subjetividade referenciada, está presente no caso do doloso e doloroso homicídio em Porto Alegre, embora o vice-presidente da República, aclarando o pensamento hegemônico do governo Bolsonaro, assim como a delegada responsável pelo caso, prefiram não ver.
Para confirmar, poderíamos, ilustrativamente, perguntar-lhes qual a possibilidade de um homem branco engravatado ter sofrido a mesma violência brutal, e pedir-lhes para demonstrar as estatísticas a respeito de casos análogos.
Negar a existência de racismo no crime está muito além de definir se há o enquadramento na Lei 7.716/1989. As dinâmicas que consagram privilégios raciais e os mecanismos que os legitimam se ligam, inexoravelmente, ao racismo efetivo, aquele que pode ser explicado pelo conceito de “habitus” de Pierre Bordieu, na medida em que nos permite analisarmos as formas como um indivíduo e seu grupo agem, reproduzindo as relações da estrutura social que estão neles internalizadas, mesmo que seja no nível do inconsciente.
Para que nós, pessoas brancas, que nunca sentimos a exclusão racista possamos percebê-la, tanto em situações cotidianas, como de violência extrema como a de que foi vítima João Alberto, é preciso justamente acompanhar os dados, verificar que não podemos enxergar os casos como isolados, como atos praticados por pessoas sem preparo ou desfechos trágicos de erros individuais. Desviar o olhar para caracterizar mais uma violência como sem cor corresponderia a ignorar as estruturas racistas que nos asseguraram privilégios.
Não é preciso aprofundarmos conceitos para entender que sem o combate cotidiano ao racismo não é possível construir uma sociedade justa, plural e diversa, em que a dignidade da pessoa seja respeitada pelo Estado e por todos os brasileiros. Desse modo é que o enfrentamento ao racismo hoje no Brasil se liga, de forma umbilical, à derrocada do governo Bolsonaro. Não se resolverá com isso. Longe, muito longe. Mesmo porque o racismo no Brasil sempre existiu, não começou com o atual governo. Mas porque ao lado do desmonte de políticas públicas de inclusão racial, retirada de direitos e de oportunidades equivalentes de participação das estruturas nacionais de poder, há a volta do encobrimento do preconceito por um discurso oficial, que propaga a existência de uma relação harmoniosa e igualitária entre pessoas brancas e negras.
O processo é alimentado pela retórica racista de Bolsonaro, que ele transforma em “piadas” quando convém. Mas vai muito além dela e mostra, na fala do General, que é uma posição que não pertence apenas ao presidente, mas ao bolsonarismo genericamente considerado, dentro e fora do governo.
Artigo originalmente publicado no Jornal GGN