A Amazônia nunca queimou tanto. Em agosto, as imagens de satélite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) registraram 31.513 focos de incêndio, número 20% acima da média histórica desse mês. Em apenas um dia, 22 de agosto, houve 3.358 focos na região, mais do que o verificado em 10 de agosto de 2019, data que ficou conhecida como “Dia do Fogo”, ação orquestrada de fazendeiros para atear fogo na maior floresta tropical do mundo. Não é uma coincidência. Todos os quatro anos de Bolsonaro no Planalto registraram meses de agosto acima da marca de 28 mil focos de incêndio na Amazônia.
A mata cinzenta, enfumaçada é a fotografia de um governo que conseguiu suplantar os próprios recordes negativos no meio ambiente. E não só nos incêndios. Sob, Bolsonaro, a floresta foi varrida por grau inédito de desmatamento e virou sinônimo de violência crescente, com invasão de territórios indígenas, ação do crime organizado e conflitos diários, e de crateras de garimpo ilegal, de onde escorrem manchas de mercúrio que matam rios e envenenam populações. O que não se vê mais na região é a ação do Estado.
Em julho, essa sucessão de tragédias levou Bolsonaro a ser condenado pelo Parlamento Europeu por má gestão ambiental. A resolução, aprovada por 362 votos a 16, não tem poder penal, mas pode trazer prejuízo no comércio, além de mais constrangimento internacional a um país já isolado dos fóruns globais.
No caso das divisas, a própria União Europeia (UE) avalia restringir a entrada de commodities associadas ao desmatamento ilegal em seu mercado. Ao todo, os produtos listados nesse projeto correspondem a mais de US$ 10 bilhões das exportações brasileiras à UE por ano, ou um terço de tudo que é vendido a países europeus.
Presidente da Comissão de Meio Ambiente (CMA), Jaques Wagner (PT-BA) é um dos senadores que mais chamam a atenção para esse risco. “Meio ambiente e economia não são agendas antagônicas. O Brasil tem enorme potencial de apresentar ao mundo um modelo de desenvolvimento sustentável, passível de ser perpetuado para esta e para futuras gerações. A mata em pé tem muito mais valor a agregar do que derrubada”, pondera.
Entre os números analisados pelos integrantes do Parlamento Europeu está o da morte de 43 indígenas na Amazônia nos últimos 10 anos, metade deles em 3,5 anos de governo de Bolsonaro. Ativistas da causa indígena, como Bruno Pereira e Dom Phillips, executados no Dia Mundial do Meio Ambiente, 5 de junho, também foram lembrados na resolução.
Desmonte pró crime
Outro agravante para essa condenação é a comprovada desestruturação de órgãos de fiscalização e de proteção à floresta e aos povos indígenas. Além de desmonte, desvio de finalidade. Como no caso da Fundação Nacional do Índio Funai), cujos dirigentes são suspeitos de estar envolvidos até com arrendamento de terras indígenas pelo agronegócio, algo vedado pela Constituição. Além disso, dotações orçamentárias que deveriam ser usadas para a proteção dos povos originários foram desviadas para indenizar fazendeiros.
Não para por aí. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) também foram sucateados. Inclusive pela redução de seus orçamentos. Levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), em abril, mostrou que a execução orçamentária para a área ambiental em 2021 foi a menor dos últimos três anos.
Garimpo ilegal
A penúria de instalações e de pessoal foi comprovada em diligência de senadores a Roraima, em maio, quando Ministério Público, Defensoria Pública e outras instituições confirmaram, ainda, o abandono dos yanomamis à ação do garimpo ilegal.
“O papel do governo federal, da União, é garantir que essas terras sejam respeitadas, é cumprir a Constituição, é impedir que morra um único indígena por conta dessas situações de transmissão de doenças e criminalidade”, afirmou, à época, o senador Humberto Costa (PT-PE), presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH).
No lugar de agentes públicos, garimpeiros. A Amazônia reúne 93% de todo o garimpo praticado no Brasil. E metade da área de exploração de minérios está em unidades de conservação (40,7%) ou em terras indígenas (9,3%). Os dados são da organização MapBiomas, que atesta, ainda, o crescimento de 495% da ação do garimpo durante o governo Bolsonaro.
Para que não se diga que “é coisa de esquerdista”, a própria Controladoria-Geral da União (CGU) apontou, em relatório no mês passado, que as concessões de outorga para garimpo na região Norte são frágeis e podem causar graves danos ambientais. Que, por sinal, já estão acontecendo. Marés de mercúrio, com volume tóxico 8.600% maior que o tolerável, estão destruindo rios que passam por reservas yanomami, por exemplo.
Desmatamento
Uma das faces mais visíveis da destruição, o desmatamento cresceu 20,1% em todo o Brasil só no ano passado, e 51% dessas derrubadas aconteceram na Amazônia, registrou o Observatório do Clima. Outro estudo, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), confirma a pesadelo que assombra a região. No nosso maior bioma, o desmatamento cresceu 56,6% nos três anos primeiros do atual governo.
Como se sabe, desmatamento e queimadas andam juntos. O fogo que se verifica agora é resultado do tanto que se desmatou nos meses anteriores. E as entidades que tentam proteger o verde já haviam alertado para o risco maior de queimadas entre agosto e setembro em razão 1.486 km² de floresta amazônica derrubados em julho. Segundo o Inpe, o pior mês desse ano. No acumulado de 12 meses, foram 8.590 km² perdidos na Amazônia, o que significa que, pelo terceiro ano consecutivo, os alertam de desmatamento na região ficam acima da marca de 8 mil kms².
Números como esses carregam as digitais do governo federal. De 2019 para cá, como havia prometido o próprio presidente da República, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) se especializou em dificultar a cobrança de multas por crimes ambientais. Diretora-executiva da Rede Nacional Pró Unidades de Conservação, Angela Kuczach, confirma: “a causa para o aumento contínuo do desmatamento é o ambiente sem lei que virou o Brasil, especialmente nas áreas de conflito como Amazônia e Cerrado.”
No Greenpeace Brasil, a percepção é semelhante. Ao analisar o quadro grave de queimadas, fruto do desmate, o coordenador da campanha de Amazônia da ONG, André Freitas, afirmou nesta semana que “na iminência de encerramento desse mandato – que está sendo um dos períodos mais sombrios para o meio ambiente – grileiros e todos aqueles que têm operado na ilegalidade viram um cenário perfeito para avançarem sobre a floresta”.
Reconstrução
O fim ou não da atual política ambiental vai depender da eleição de outubro. Mas há um tipo de espelho que mostra ao público imagens que já não se veem. São os registros, os índices, a própria história do país. Se hoje é possível afirmar que o Brasil está sob o governo do desmonte, é porque havia algo no lugar. Na preservação das florestas, na proteção aos povos originários e no combate ao crime organizado na Amazônia. Não faltam exemplos.
Parte deles é trazida por servidores de órgãos-chave do Estado na região. Em nota conjunta publicada em fevereiro, servidores do MMA, Ibama, ICMBio e Serviço Florestal Brasileiro denunciaram todo tipo de violação, institucional e funcional, e reivindicaram a retomada dos Planos de Proteção e Combate ao Desmatamento da Amazônia e do Cerrado; a desativação de “bombas” instaladas no Congresso a partir de 2019, como o chamado Pacote da Destruição – PL do Veneno, PL da Grilagem de Terras, facilitação do contrabando de madeiras de terras públicas, permissão de garimpo em terras indígenas -, além de outras ações do governo atual contrárias ao meio ambiente, como a formação de milícias de caçadores e disseminadores de javalis.
A recuperação de programas que vinham sendo executados até o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff, em 2016, muitos deles premiados, faz parte dessa lista de reivindicações, não só de servidores, como de organizações da sociedade em defesa do Meio Ambiente.
Uma das marcas do período de governo de 2003 a 2016 foi promover transformações no trato ambiental pactuadas com a sociedade civil. Com isso, políticas públicas para o setor foram construídas e integradas, junto com a atualização do marco legal ambiental, com base no tripé formado por desenvolvimento com sustentabilidade e inclusão social.
Para mudar um processo secular de exploração da Amazônia, baseado na apropriação dos recursos naturais e exclusão social, os governos Lula e Dilma criaram o Plano Amazônia Sustentável (PAS), que passou a orientar a política ambiental na Amazônia Legal, o Cadastro Ambiental Rural (CAR), o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), o Bolsa Verde, o Programa de Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA), que virou o maior programa de conservação de florestas tropicais no mundo, entre outras iniciativas.
No caso do Bolsa Verde, de 2011, o objetivo foi promover a qualidade de vida, o acesso e o uso dos recursos naturais, a conservação ambiental e a promoção dos direitos humanos das populações do campo. O programa incrementou a renda de mais de 77 mil famílias, muitas delas ribeirinhas, dinamizou a economia local e introduziu, na prática, o conceito do benefício pela conservação ambiental.
Essas famílias também foram contempladas com o Plano Nacional para o Fortalecimento das Comunidades Extrativistas e Ribeirinhas. Criado em 2015, ele veio para integrar e articular o acesso dessas comunidades às políticas de saúde, educação, infraestrutura social, fomento à produção sustentável, geração de renda e gestão ambiental e territorial das áreas de uso e ocupação tradicional.
Nada menos que 90 Unidades de Conservação foram criadas. E nas áreas em que era possível plantar, o reforço veio pelo Programa Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, lançado em 2013 para costurar o elo da sociobiodiversidade com a agroecologia e a produção orgânica.
Entre outros resultados, o plano de controle do desmatamento baixou 79% a taxa de derrubada de florestas em 2015, em comparação com 2004, ano da implantação do PPCDAm.
Fundo Amazônia
Uma mudança de rumo no Brasil pode também significar a volta do Fundo Amazônia, criado em 2008 no governo Lula. Esse acordo de cooperação com Noruega e Alemanha, que rendeu divisas ao Brasil em troca da preservação do bioma, está paralisado desde 2019 em razão de negativas de ações de transparência por parte do governo brasileiro. Segundo estudo da CGU, com essa quebra de parceria o Brasil perde a chance de receber US$ 20 bilhões. Que, sim, dependendo de quem governar o país, podem ser recuperados a partir do ano que vem.
Mudanças Climáticas
O que também pode ser resgatado é a imagem de respeito no cenário internacional. O Brasil do passado recente criou a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), um conjunto de meios e metas para a redução de emissões de gases de efeito estufa (GEEs). E, com essa bagagem, apresentou-se no Acordo de Paris, em 2015, com a proposta de reduzir emissões em 37% em 2025, com base em 2005, com uma meta indicativa de 43% para 2030.
Olhando de novo para o presente, as emissões brasileiras de GEE em 2020 cresceram 9,5%, enquanto no mundo inteiro elas despencaram quase 7% devido à pandemia de Covid-19. É o maior montante de emissões do Brasil desde 2006, registrou o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG), do Observatório do Clima. Ente outros motivos, os cientistas apontam o desmatamento na Amazônia.
Números que explicam o porquê de o país não ter sido chamado a facilitar nenhuma conversa importante durante as negociações da COP26, Conferência do Clima realizada na Escócia no ano passado. E preocupam o senador Fabiano Contarato (PT-ES), que solicitou debates temáticos no Senado sobre os planos do Brasil para a próxima Conferência, a COP 27, que acontecerá de 7 a 18 de novembro em Sharm el Sheik, no Egito.
“Os países reunidos na próxima cúpula global do clima continuam com o grande desafio de combater o aumento da temperatura global e suas consequências. O Brasil hoje vive um desmonte em todas as suas políticas de preservação ambiental, e a Amazônia queima”, justificou o senador.
Com um olho no retrovisor e outro na estrada, o líder do PT no Senado, Paulo Rocha (PA), consegue vislumbrar o resgate de conquistas hoje abafadas por tanta fumaça. Mas adverte que é preciso ter à frente um governo que queira desenvolver a Amazônia sem destruí-la, algo que, segundo ele, os governos do PT já provaram ser possível.
“Tratamos o desenvolvimento sustentável e a preservação como meta. Entre os frutos deste trabalho está o reconhecimento internacional, a partir da divulgação clara dos dados sobre a situação das nossas florestas. Temos consciência de que teremos um longo trabalho após tantos retrocessos, mas certamente a volta de um governo popular irá trazer de volta a confiança do mundo e dos brasileiros no cuidado com um dos nossos maiores patrimônios”, esperançou o senador.