Após seu anunciado périplo por países de governos conservadores que o inspiram, talvez os únicos em que seria razoavelmente recebido (o Chile dos Chicago Boys, Israel de Netanyahu e os EUA de Trump), Bolsonaro pretende retornar ao Brasil com um “troféu” nas mãos: um “novo” Acordo de Alcântara.
O “novo” é entre aspas mesmo, pois duvidamos que os EUA venham a fazer quaisquer concessões significativas no texto antigo do acordo. Afinal, esse “novo” texto foi renegociado pelo governo Temer e concluído no governo Bolsonaro. Ora, ambos os governos, ou desgovernos, têm como marca principal, na política externa, a submissão aos EUA, especialmente o do capitão, que idolatra Trump.
Assim, é pouco provável que o “novo” texto seja muito diferente do antigo.
E o antigo era muito, muito ruim.
Em abril de 2000, os EUA e o Brasil (sob gestão tucana) assinaram acordo bilateral com o objetivo, em tese singelo, de permitir que empresas norte-americanas pudessem usar a nossa Base de Alcântara para lançar os seus satélites.
Conforme informações do governo da época, tal uso poderia gerar recursos de monta (cerca de US$ 30 milhões ao ano, numa avaliação muito otimista) para reativar a base que ainda está subutilizada. Para as empresas norte-americanas, este uso seria proveitoso, em razão do fato de que o Centro de Lançamentos de Alcântara está bastante próximo da linha do Equador, o que diminui significativamente os custos dos lançamentos.
Até aí, tudo bem. Nada demais em permitir que empresas de quaisquer países usem comercialmente nossa base de lançamentos, desde que paguem o preço justo e respeitem nossa soberania.
Entretanto, nas discussões ocorridas no Congresso e no âmbito da sociedade civil à época, constatou-se que o governo dos EUA havia imposto condições draconianas e atentatórias à soberania nacional para permitir que as suas empresas usassem a Base de Alcântara. A oposição, liderada pelo PT e com o apoio até dos partidos da situação, conseguiu impedir a aprovação do acordo na Câmara.
Politicamente morto, o acordo ficou enterrado na CCJ daquela Casa. O julgávamos extinto. Mas, agora, acaba de ser ressuscitado, em surdina e nas penumbras, pelos governos de Temer e de Bolsonaro, que, abanando o rabo de vira-lata, acabou de renegociá-lo com Washington.
Pois bem, o Acordo de Alcântara antigo intitulava-se “Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América sobre Salvaguardas Tecnológicas Relacionadas à Participação dos Estados Unidos da América nos Lançamentos a partir do Centro de Lançamento de Alcântara, celebrado em Brasília, em 18 de abril de 2000. ”
Desse modo, o Acordo de Alcântara tinha apenas um objetivo manifesto: proteger tecnologia sensível de origem norte-americana (satélites, foguetes, etc.) de apropriação indevida.
Porém, o acordo firmado com o Brasil tinha dois tipos de cláusulas: salvaguardas tecnológicas e salvaguardas políticas. Estas últimas não tinham qualquer relação com o objetivo manifesto do acordo e não constam de qualquer outro acordo de salvaguardas tecnológicas firmados entre os EUA e outros países.
São elas:
- Proibição de usar o dinheiro dos lançamentos no desenvolvimento do veículo lançador-VLS (Artigo III, parágrafo E, do Acordo de Alcântara);
Esta salvaguarda, ao proibir o uso dos recursos do aluguel da Base de Alcântara no programa brasileiro do VLS (Veículo Lançador de Satélites), interferia indevidamente num programa de enorme importância para o desenvolvimento espacial brasileiro. Com efeito, um veículo lançador de satélites próprio permitiria ao Brasil entrar, de forma autônoma, no lucrativo e estratégico mercado da colocação em órbita de satélites de comunicação. Ademais, tal cláusula era claramente atentatória à soberania nacional, uma vez que nenhum país estrangeiro pode ter potestade, no que tange ao uso que o Brasil faria do dinheiro provindo do aluguel de sua própria base.
- Proibição de cooperar com países que não sejam membros do MTCR (Artigo III, parágrafo B, do Acordo de Alcântara);
Tal salvaguarda, ao proibir que o Brasil cooperasse com países que não fossem membros do (Míssil Technology Regime Controle-MTCR), impunha restrições descabidas à cooperação tecnológica nacional e conferia a um país estrangeiro, os EUA, no caso, o poder de limitar o arbítrio da República Federativa do Brasil quanto à maneira de usar a sua base nacional e desenvolver seu programa aeroespacial. Saliente-se que o MTCR é um regime criado basicamente pelo EUA para impedir que países possam desenvolver a tecnologia de veículos lançadores de satélites, que também podem ser usados, com adaptações, como mísseis militares.
É necessário colocar em relevo também que a China, assim como vários outros países, não pertence ao MTCR, por considerá-lo injusto, irracional e pouco eficiente, além de ser um instrumento que tende a perpetuar as desigualdades tecnológicas entre as nações. Pois bem, o Brasil desenvolve, em conjunto com a China, em função de acordo bilateral firmado em julho de 1988, um importantíssimo programa de cooperação na área espacial: o desenvolvimento e lançamento dos Satélites Sino-Brasileiros de Recursos Terrestres (CBERS). É evidente que, caso esse dispositivo fosse aprovado, os satélites sino-brasileiros não poderiam ser lançados da base de Alcântara.
- Possibilidade de veto político unilateral de lançamentos (Artigo III, parágrafo A, do Acordo de Alcântara),
No que se refere a esta salvaguarda relacionada ao veto político unilateral de lançamentos, ela também não tinha, evidentemente, nenhuma relação com o resguardo de tecnologia norte-americana. Pelo que estava previsto no texto antigo do Acordo, os Estados Unidos poderiam proibir que o Brasil pudesse, utilizando base instalada em território nacional e veículos de lançamento de sua propriedade (ou de propriedade de terceiros países), lançar satélites para nações desafetas dos EUA. O absurdo de tal cláusula salta aos olhos.
- Obrigatoriedade de assinar novos acordos de salvaguardas com outros países, de modo a obstaculizar a cooperação tecnológica (Artigo III, parágrafo F, do Acordo de Alcântara).
Tal salvaguarda política, ao impor que o Brasil assinasse acordos de salvaguardas com outros países que viessem a se utilizar da nossa Base, nos mesmos moldes do Acordo de Alcântara, representaria também sério obstáculo à cooperação tecnológica. Ademais, tratava-se, conforme nossa concepção, de verdadeira aberração jurídica que contraria os mais elementares princípios do direito internacional. Nações soberanas não podem ser coagidas a celebrar atos internacionais entre si em função de um acordo bilateral firmado por uma delas com outro país, e muito menos serem obrigadas a inscrever nesses atos o mesmo conteúdo do acordo. Na realidade, essa cláusula tem um endereço certo: os acordos de cooperação nos usos pacíficos do espaço exterior firmados pelo País com a Rússia, a Ucrânia, a China e a Itália, além de outros.
O temor do governo norte-americano era que esses países, em decorrência das atividades de cooperação ensejadas pelos acordos, repassem ao País ou facilitassem o desenvolvimento de tecnologia de veículos lançadores de satélites para o Brasil.
No caso dos outros acordos de salvaguardas tecnológicas firmados pelos EUA com a Rússia, China, Cazaquistão e Ucrânia essas cláusulas políticas não estão presentes, porque tais países já dispõem da tecnologia do veículo lançador de satélites, além de saberem defender melhor a sua soberania.
Assim sendo, o Acordo de Alcântara era um ponto fora da curva, no que se refere aos acordos de salvaguardas tecnológicas firmados pelo EUA, uma vez que contém salvaguardas puramente políticas que não possuem nenhuma relação com a proteção de tecnologia norte-americana.
Contudo, mesmo as salvaguardas tecnológicas propriamente ditas, admissíveis num acordo dessa natureza, foram redigidas de forma imprópria e atentatória à soberania nacional.
Entre outras, destacamos as seguintes:
- Os EUA teriam o direito de ter a disposição e controlar “áreas restritas” dentro da Base de Alcântara.
Tais áreas seriam controladas vinte e quatro horas por dia exclusivamente pelos EUA. Brasileiros lá não poderiam entrar. O governo dos EUA poderia também, conforme o Acordo, instalar aparelhagem eletrônica para melhor controlar tais áreas e nelas realizar inspeções sem aviso prévio ao governo brasileiro. Até mesmo os crachás para se adentrar tais áreas seriam emitidos unicamente pelo governo dos EUA ou por seus representantes autorizados. Assim, caso tivessem aprovado o Acordo, os senhores Jair Bolsonaro e Eduardo Araújo, se quisessem circular livremente pela Base de Alcântara, teriam, em tese, de portar crachás emitidos por autoridades norte-americanas
- O Brasil não poderia revistar o material que os EUA fizerem ingressar na Base.
Com efeito, o Acordo previa que os “containers” lacrados que virão dos EUA não poderiam ser abertos enquanto estiverem em território brasileiro. Tais “containers” só poderiam ser abertos nas “áreas restritas”, exclusivamente por pessoal norte-americano. Ou seja: a alfândega brasileira ou quaisquer outras autoridades brasileiras não poderiam ter nenhum acesso às cargas que ingressarão em Alcântara. Embora se alegue que esta cláusula é vital para se “proteger a tecnologia norte-americana”, ela encerra grande perigo: o Brasil não teria nenhum controle sobre o que os EUA lançariam de Alcântara. Assim, se quisessem, os EUA poderiam lançar satélites de uso militar a partir da nossa base. Comenta-se, inclusive, que Alcântara poderia se converter numa das bases para um novo escudo antimíssil. As repercussões geopolíticas, principalmente no âmbito dos BRICS, seriam assustadoras e desastrosas.
- Os escombros de lançamentos fracassados não poderiam ser estudados ou fotografados de nenhuma forma.
De fato, o Acordo proibia que o governo brasileiro estudasse ou fotografasse escombros que tivesse caído sem seu próprio território. Saliente-se que tal cláusula contraria tratado internacional sobre o assunto. De fato, esse dispositivo não se coaduna com os princípios do direito internacional aplicáveis ao caso, consubstanciados no “Acordo sobre o Salvamento de Astronautas e Restituição de Astronautas e de Objetos Lançados ao Espaço Cósmico”, datado de 22 de abril de 1968.
Tal acordo prevê o direito de custódia para o país em cujo território caiam os escombros, o que seria negado pelo presente ato internacional, na medida em que determina a imediata restituição dos destroços.
Na época em que o Acordo estava sendo discutido na Câmara, comentou-se muito sobre a maneira descabida e desrespeitosa como foram redigidas as salvaguardas tecnológicas. Porém, comentou-se pouco sobre o gigantesco atentado à soberania nacional expresso nas absurdas salvaguardas políticas do Acordo de Alcântara.
Essas cláusulas políticas manifestam o grande objetivo do Acordo para o governo norte-americano: colocar o programa espacial brasileiro na órbita estratégica dos EUA e impedir o desenvolvimento do Veículo Lançador de Satélites por parte do Brasil.
Aliás, isso foi dito com todas as letras, na negociação ocorrida em 2000. Os EUA afirmaram que não queriam que o Brasil desenvolvesse seu Veículo Lançador.
Essa determinação continua. Aliás a cooperação espacial do Brasil com a Ucrânia fracassou, em boa parte, por causa dessa pressão dos EUA.
Tal oposição dos Estados Unidos à cooperação entre Ucrânia e Brasil está registrada em telegrama que o Departamento de Estado enviou à sua embaixada em Brasília, em janeiro de 2009. Conforme esse telegrama, os EUA “não apoiam o programa nativo dos veículos de lançamento espacial do Brasil…..” “Queremos lembrar às autoridades ucranianas que os EUA não se opõem ao estabelecimento de uma plataforma de lançamentos em Alcântara, contanto que tal atividade não resulte na transferência de tecnologias de foguetes ao Brasil”.
Os Estados Unidos também se opuseram a lançamentos de satélites norte-americanos (ou fabricados por outros países, mas que contenham componentes estadunidenses) a partir do Centro de Lançamento de Alcântara, por falta de um Acordo de Salvaguardas Tecnológicas e “devido à nossa política, de longa data, de não encorajar o programa de foguetes espaciais do Brasil”.
Observe-se que, com o veículo lançador, o Brasil poderia dominar todo ciclo da tecnologia espacial e ser um player importante no mercado de lançamentos de satélites. Afinal, temos uma base de localização privilegiada, que permite lançamentos comparativamente baratos, e um acordo com a China para o desenvolvimento conjunto de satélites. Só nos falta o veículo lançador para que o nosso grande potencial nessa área crítica da tecnologia possa se concretizar.
Só que Washington não quer. Aliás, isso foi dito, repetimos, com todas as letras no início das negociações do Acordo de Alcântara. Os ianques disseram, na caradura, que “permitiriam” o uso da Base de Alcântara para lançamentos de satélites, desde que o Brasil extinguisse o programa do VLS e concordasse com todas as cláusulas políticas que seriam inseridas no texto.
O Executivo da época engoliu a bofetada e a ordem do Império. O Congresso, não.
Mas, agora, os novos vira-latas, bons cristãos que são, querem dar a outra face.
Não se enganem: o acordo deverá voltar de Washington, na essência, tal como saiu em abril de 2000. O zumbi de Alcântara terá o mesmo corpo, o mesmo texto, o mesmo odor pútrido. Afinal, os EUA sabem defender os seus interesses.
Quem não sabe ou não quer defender os interesses de seu país é o governo Bolsonaro, que até já subordinou nossas Forças Armadas ao Comando Sul dos EUA. O capitão e seu chanceler também defenderam, em público, a criação de uma base norte-americana em território brasileiro.
Assim, com essa “renegociação”, o governo antinacional estaria assumindo que, no campo aeroespacial, assim como em outras áreas estratégicas, o Brasil será mero exportador de commodities. No caso, uma commodity geográfica. Supriremos os EUA com uma localização geográfica privilegiada. E nada mais. Nada de veículo lançador próprio. Nada de satélites competitivos.
Restará ao Congresso defender o Brasil.
Quando da ocasião da tramitação do acordo antigo na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara, preparei os pareceres para o relator, o então Deputado Waldir Pires (PT/BA).
Construímos um parecer que agregou todas as forças contra o acordo.
No dia da sessão de votação, fomos surpreendidos por uma série de elogios ao trabalho do Doutor Waldir Pires. Todos os partidos, sem exceção, manifestaram total apoio ao parecer do Doutor Waldir. Mesmo o PSDB e o PFL (hoje DEM) expressaram seu entusiasmo com o parecer. O mínimo que se disse é que a sessão era histórica, que o parecer era primoroso, que nenhuma outra Comissão teria capacidade de derrubar o trabalho que seria ali aprovado, como de fato aconteceu. Formou-se, dessa forma, uma grande frente suprapartidária contra o Acordo de Alcântara.
Entretanto, chegou a hora de manifestar seu voto um deputado de perfil, por dizê-lo de forma eufemística, extremamente discreto, que só abria a boca, em geral, para defender pautas corporativas de militares e a finada ditadura. Nunca o vimos, naquela comissão, expressar opinião relevante sobre os grandes temas internacionais ou apresentar algum relatório ou projeto expressivo.
Para nossa surpresa, as Notas Taquigráficas da Câmara registraram para a história a seguinte manifestação:
“O SR. DEPUTADO JAIR BOLSONARO – Louvo a competência do Deputado Waldir Pires, mas por outras razões que, no momento, preservo-me de citar, voto contrariamente ao projeto”- Câmara dos Deputados, CREDN, Notas Taquigráficas, 31/10/2001)
Sim, o então deputado votou contrariamente à frente parlamentar contra o Acordo de Alcântara.
Agora, já presidente, voltará ao Brasil com um provável “troféu de grego” ou “presente de grego” para a Nação: a alienação da nossa base aos EUA e, possivelmente, a inserção do nosso programa espacial na órbita dos interesses geoestratégicos dos EUA.
Um cavalo de troia espacial.