Essa questão dominou os debates no 1º Seminário Infância Livre de Consumismo, realizado dia 9 passado, pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.
Como pano de fundo, o Seminário buscou lançar o debate sobre a influência que a liberdade de expressão comercial existente no Brasil tem na formação dos hábitos alimentares e comportamentais das crianças.
O consumo excessivo de alimentos não saudáveis é um problema no Brasil e no mundo. As Doenças Crônicas Não-Transmissíveis (DCNT) como obesidade, diabetes, problemas do coração e problemas dentários são problemas de saúde pública causados diretamente pelo consumo excessivo de alimentos com quantidades elevadas de açúcares, gorduras ou sódio. As mortes causadas por DCNTs ocorrem principalmente na idade adulta, mas a situação de risco começa a ser construída na infância, principalmente devido aos hábitos alimentares.
No Brasil, a indústria de alimentos aposta na propaganda dirigida ao público infantil. De acordo com pesquisa da Universidade de Brasília 72% das publicidades de alimentos são de alimentos não-saudáveis, e 44% das propagandas de alimentos são voltadas ao público infantil.
Esta situação é tanto mais agravada, quando se sabe que a criança brasileira é a que mais vê televisão no mundo. De acordo com o Painel Nacional de Televisores do Ibope 2007, as crianças brasileiras entre quatro e 11 anos passam, em média, cerca de 5 horas diárias em frente à TV.
O indicador mais forte das conseqüências desta situação, citado no Seminário da CDHM, está em recente pesquisa do IBGE, que registrou aumento de 200% na incidência de sobrepeso em crianças de cinco a nove anos de idade. Este percentual aponta para o surgimento de uma epidemia comparável à que já ocorre nos Estados Unidos, onde a situação é muito grave e se tornou um problema de governo.
As causas desta situação, conforme também foi dito no Seminário, são muitas e vão desde a omissão dos pais na educação alimentar dos filhos até a influência da publicidade sobre os hábitos de consumo.
E por mais que as entidades de representação do mercado publicitário insistam que já existe uma autorregulamentação severa e suficiente, a verdade é que estamos longe disso. E longe, muito longe, da realidade de outros países.
Na Suécia e na Noruega, por exemplo, é proibida qualquer publicidade dirigida a crianças, de qualquer produto. Áustria, Austrália e Bélgica restringem publicidade de produtos durante ou imediatamente antes ou depois de programas infantis. Nos Estados Unidos chega a ser proibida a vinculação de personagens à venda de produtos nos intervalos dos programas com os mesmos personagens.
Em vários outros países existem proibições e limitações legais à publicidade dirigida ao público infantil. E todos os que têm este tipo de legislação, são países de democracia consolidada, desautorizando qualquer vinculação entre a vigência destas legislações e prática antidemocrática. Ao contrário.
No Seminário da Câmara, representantes do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) insistiram na tese oposta, de que leis nesse sentido ferem o princípio constitucional do direito à livre expressão.
Para seus representantes, ao garantir a liberdade de expressão, a Constituição de 1988 assegurou, também, a “liberdade de expressão comercial”, que é o direito “‘a liberdade de expressão das pessoas jurídicas”. Insistiram, também, no papel do “poder familiar”, como o outro pilar de sustentação e definição dos hábitos de consumo.
Com isso, eles concluem, ou querem fazer crer, que não cabe ao Estado regular as relações de consumo de quem quer que seja – adultos ou crianças.
E ao se escorar na Constituição, insistem em repisar as “restrições legais” impostas à publicidade de tabacos, agrotóxicos, bebidas alcoólicas, medicamentos e terapias constantes do artigo 220, como exemplo de suficiência legal.
Não só é equivocado, como é também falacioso este argumento. Os setores citados no artigo 220 são exemplos do que deve ser proibido, não são a totalidade do que deve ser regulamentado. Se assim não fosse, não se justificaria, por exemplo, a existência do Estatuto Desarmamento, que está em vigor, apesar do produto arma não constar da lista do artigo 220.
Além de tudo, dos resultados pouco ou quase nulos da autorregulamentação, fica sempre a interrogação sobre o porquê do privilégio do mercado publicitário de se autorregulamentar. Se há leis para quase todo tipo de atividade profissional, porque o mercado de publicidade tem o direito de estabelecer as suas próprias normas de funcionamento?
Os representantes do Conar estão certos quando dizem que seu Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, de 1980, é bastante rigoroso. O problema é sua aplicação. No Seminário da CDHM, depoimentos de representantes do Coletivo Infância Livre de Consumismo apontaram para esta ineficácia, com exemplos de publicidades que foram avaliadas pelo Conar e, consideradas inadequadas, só tiveram determinação para serem retiradas do ar depois que a campanha publicitária já havia sido encerrada.
Na Seção XI do Código é tratada a questão da publicidade para crianças e adolescentes. E o seu Anexo H trata especificamente de comerciais sobre “alimentos, refrigerantes, sucos e bebidas assemelhadas”.
Seria um bom começo se o Conar admitisse que as normas por ele mesmo estabelecidas em seu Código fossem o ponto de partida para a discussão de uma proposta de legislação sobre publicidade para crianças e adolescentes.
Esta é uma discussão que precisa e vai ser feita. Apesar do interesses contrários que, não há dúvida, são muitos e poderosos.
Artigo publicado no portal Brasil 247