ARTIGO

Trabalho com qualidade de vida, por Jaques Wagner

Revisão do modelo atual ajudaria a reduzir as desigualdades sociais e raciais, já que a ampla maioria das pessoas submetidas à escala 6x1 são negras e negros, diz líder do Governo no Senado

Divulgação/VAT

Trabalho com qualidade de vida, por Jaques Wagner

O movimento Vida Além do Trabalho (VAT) defende o fim da escala 6x1

“A vida não é só trabalhar”. A frase do grande humanista e ex-presidente do Uruguai Pepe Mujica ganhou nas últimas semanas um significado concreto no Brasil com o intenso debate travado nas redes sociais sobre a chamada “escala 6×1”.

A imensa maioria da população brasileira entende bem o que significa a expressão e sente na pele, todos os dias, os efeitos dessa exploração massacrante.

A semana dividida em seis dias de trabalho e apenas um de descanso é desumana. Além do desgaste físico, prejudica a saúde mental, desagrega famílias, afasta amizades e, ao dificultar o lazer, joga para escanteio os momentos de felicidade e gera irritação, o mau-humor, a doença e, muitas vezes, a violência.

A frase de Mujica dialoga com um conceito conhecido há quase 30 anos: o “ócio criativo”, um dos principais legados deixados pelo sociólogo italiano Domenico De Masi (1938-2023). Para ele, o lazer estimula a criatividade e, portanto, deve fazer parte da vida de todas e todos, num equilíbrio constante com o trabalho e o estudo.

A ideia faz sentido. O ser humano precisa de tempo para o lazer, para se dedicar a atividades que gerem prazer, satisfação, alegria, seja sozinho, com a família ou com amigos.

E o benefício não está restrito apenas ao trabalhador, mas se estende também ao empregador. A mente sã, descansada e arejada tem uma capacidade muito maior de concentração tanto para executar as tarefas do dia a dia, quanto para encontrar soluções que tornem a atividade mais produtiva.

Por isso, para o PT e o campo progressista, o fim da escala 6×1 é uma luta histórica e é animador ver o debate ressurgindo neste momento.

Infelizmente, a reação de alguns setores da economia não é razoável. Parecem querer interditar a mera discussão das propostas, como se o trabalhador não pudesse nem sonhar com mais qualidade de vida. Não é apenas o trabalho que dignifica as pessoas, mas também a possibilidade que a renda desse trabalho cria para financiar momentos de prazer.

Não há uma fórmula pronta para encontrar uma alternativa. Mas é preciso, no mínimo, boa vontade para o diálogo, em especial nos tempos atuais de revolução tecnológica, onde para cada aplicativo bem sucedido surge um novo bilionário e milhares de pessoas sub-empregadas.

Uma revisão do modelo atual ajudaria também a reduzir as desigualdades sociais e raciais, posto que a ampla maioria das pessoas submetidas à escala 6×1 nos setores com maior jornada de trabalho são negras e negros.

Para quem recebe um salário mínimo, a redução de jornada significaria imediatamente aumento do salário por hora trabalhada.

Daí a importância de debater as propostas em tramitação no Congresso Nacional. Além da iniciativa da deputada Érika Hilton, que após uma contagiante mobilização social obteve o apoio necessário para apresentar a PEC que acaba com a escala 6×1, há pelo menos dois outros projetos que seguem na mesma direção, ambos de parlamentares do PT – um de 2015, do senador Paulo Paim, incansável defensor dos direitos trabalhistas, e outro de 2019, do deputado federal Reginaldo Lopes.

Os textos prevêem a redução da jornada de trabalho das atuais 44 para 36 horas semanais, sem redução de salário. Na prática, seria possível adotar a escala 4×3, mantido o limite de 8 horas de trabalho por dia, mais pelo menos 1 hora para refeição. A mudança ocorreria ao longo de alguns anos para evitar alterações bruscas na economia.

Vale lembrar que esse debate está longe de ser uma exclusividade brasileira. Medidas semelhantes já foram experimentadas com sucesso em vários países, como Alemanha, Itália, França e Inglaterra.

Na Islândia e na Nova Zelândia, assim como nos países nórdicos – Dinamarca, Suécia, Noruega e Finlândia –, a redução da jornada com aumento dos períodos de descanso vem ganhando cada vez mais espaço, com manutenção de salário e, muitas vezes, aumento da produtividade.

Coincidência ou não, eles encabeçam as listas de países mais felizes do mundo. Ou seja, talvez seja este um dos caminhos para que a humanidade alcance o Estado de bem-estar social, meta estabelecida pela ONU desde sua criação, há 80 anos, mas jamais concretizada.

Seja como pensa Pepe Mujica – “É preciso deixar um bom capítulo para a loucura que cada um tem. Você é livre quando pode gastar o tempo da sua vida em coisas que te motivam” –, seja como ensinou Domenico De Masi – “A plenitude da atividade humana é alcançada somente quando nós trabalhamos, aprendemos e nos divertimos, tudo ao mesmo tempo” –, fato é que o debate sobre a redução da jornada de trabalho encontrou eco nas redes sociais, chegou às ruas e está reverberando no Parlamento.

Agora, cabe a todos nós, parlamentares, governantes, empresários e trabalhadores, encontrar os pontos em comum para dar um novo passo rumo à redução das desigualdades. Temos uma grande oportunidade de fazer isso agora. Vamos em frente.

Artigo originalmente publicado na revista Carta Capital

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