Ainda não demos resposta a muitas Zuzus que desejam acalentar seus filhos que moram na escuridão do mar.
Chico Buarque escreveu a canção Angélica para Zuzu Angel, a incansável mãe que “só queria embalar seu filho”; a estilista que usou sua evidência mundial em denúncias cotidianas, na tentativa de reaver o corpo do filho Stuart Angel Jones, militante estudantil, que sabia ter sido morto pelos militares. Sabia onde e sabia como, embora nunca tenha tido a confirmação oficial de qualquer autoridade. Por ser famosa, Zuzu não fora calada dentro dos porões, mas em um dos muitos estranhos e improváveis “acidentes de carro” ocorridos nos tempos sombrios do regime militar no Brasil.
Décadas passadas, ainda não demos resposta a muitas Zuzus que desejam acalentar seus filhos que moram na escuridão do mar; ainda enfrentamos a vergonha da blindagem oficial posta pela conveniência política de alguns, que criam toda sorte de empecilhos para que fatos permaneçam como sombras.
O primeiro passo significante para mudar o curso triste e repulsivo desse rio de dissimulações foi dado com a criação da Comissão Nacional da Verdade, em 2011. O segundo ocorreu no dia 17 de setembro de 2012 quando, após especulações quase infindas, foi publicada a Resolução nº 02 da CNV, que colocou um ponto final na propalada possível amplitude de suas esferas de investigação e análise, evidenciando que as graves violações de Direitos Humanos por ela examinadas são aquelas praticadas por agentes públicos, pessoas a seu serviço, com apoio ou interesse do Estado no período de 1946 a 1988. Não há que se falar, portanto, no tratamento a supostos crimes atribuídos a opositores do regime ditatorial, que vigorou no Brasil de 1964 a 1985.
Sepulta-se, desse modo, os fictícios argumentos de se levar em consideração uma suposta proporcionalidade entre os que puseram em marcha um golpe e se apossaram do Estado e aqueles que a isso resistiram, com ou sem armas.
Para os membros da Comissão Nacional da Verdade, há quatro pilares que sustentam a Resolução nº 02: a Lei 12.528/2011, que criou o colegiado; o artigo 8º das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988; a Lei nº 9.140/1995; e o conceito de graves violações de direitos humanos previsto no direito internacional, que dão forma a acordos dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção Interamericana Sobre os Direitos Humanos – São José da Costa Rica – 1969, e a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes – Nova York – 1984.
A Lei nº 9.140/1995 admite “como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, deste então, desaparecidas, sem que delas haja notícias”. A mesma lei, em seu artigo 4º, reconhece as vítimas de repressão policial sofrida em manifestações públicas ou em conflitos armados com agentes do poder público e as que tenham falecido em decorrência de suicídio praticado na iminência de serem presas ou por sequelas psicológicas advindas da tortura.
Contra a Resolução nº 02/2012 levantam-se as mesmas vozes discordantes da existência da própria Comissão, insistindo na velha e exaustiva tese da impossibilidade de averiguação dos acontecimentos, tendo em vista ter sido a anistia ampla, irrestrita e fruto de acordo. Disso, em primeiro plano, urge que se diga que a referida Lei foi “votada” em 1979 por um Congresso subjugado, por uma maioria de 05 votos (206 favoráveis e 201 contra). Não houve acordo, mas um bando de generais tentando impedir que seus crimes fossem revelados e, quiçá, julgados. Às tentativas de aberturam se sobrepuseram episódios como os do Riocentro, no Rio de Janeiro, em abril de 1981, em que militares intentavam explodir uma bomba no evento em que milhares de pessoas participavam de um ato pelo 1º de Maio.
A Comissão Nacional da Verdade é produto do III Plano Nacional de Direitos Humanos, gestado na Conferência de mesmo nome, ocorrida em Brasília no final do ano de 2009. Somente transformou-se em projeto de lei após sua aprovação pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, incorporando diversas emendas, inclusive da oposição. Sabem seus integrantes que a Comissão não pode rever a Lei da Anistia, nem tem esse objetivo. O que ela deve é escancarar décadas de silêncio e mentiras que atentam contra o direito ao saber.
A escolha da Presidenta Dilma na composição da CNV recaiu sobre pessoas notáveis, em capacidade, formação e atuação. E o colegiado tem se comportando dentro da mais alta dignidade, dando curso ao desafio de resgate da memória histórica, para desespero dos que, cinicamente, se dão ao trabalho de negar a existência da ditadura e suas cruéis consequências.
De fato, o entendimento sobre a circunferência da atuação da Comissão Nacional da Verdade já fora, em diversos momentos, externada por seus membros. O que ocorre com a Resolução nº 02/2012 é que o centro de referência que estabelecia o próprio sentido da existência do órgão está posto agora em ato formal, com o condão de estabelecer categoricamente os contornos definitivos dados ao tema, e permitindo ao colegiado centrar-se no seu trabalho de pesquisa e levantamento de dados para análise.
O país tem a chance de, ao final desse processo, fazer um resgate de seu passado recente, para que conste, inclusive, de forma mais evidente nos livros de História o que se passou em seu passado recente, na segunda metade do século passado. Assim poderemos adquirir mais consciência sobre nós mesmos. Em tempos de democracia é preciso afirmar tantas vezes quantas forem necessárias que não toleraremos – incluindo o passado – que o Estado cometa violações físicas e mentais contra seus cidadãos, aniquilando-os. Isso é o que nos cabe como nação, para que possamos afirmar a razão pública e a consciência democrática em detrimento do totalitarismo e da barbárie.
*Tânia Oliveira, assessora técnica da área jurídica da Liderança do PT do Senado