Senador goiano vê “migração direcionada” em recebimento de refugiados haitianos – e perde a compostura à simples menção de trabalho escravo
Gleisi: oposição cria clima de guerra fria na Comissão de Relações ExterioresCoube à senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) sintetizar o ambiente da reunião da Comissão de Relações Exteriores (CRE) que, na manhã desta quinta-feira (28), ouviu o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, sobre posições assumidas pelo Brasil em fóruns da Organização das Nações Unidas (ONU). Gleisi pediu desculpas a Vieira pelo “constrangimento” decorrente do “clima de guerra fria” que, mais uma vez tomou conta da sessão da CRE, descambando para “teorias da conspiração”, como bem anotou a senadora que poderiam ser risíveis, não fossem elas declamadas em uma reunião oficial de um colegiado do Senado da República.
O ponto alto do festival macartista, mais uma vez, foi obra do senador Ronaldo Caiado (DEM-GO), para quem os refugiados haitianos que chegam ao Brasil fugindo da cólera, da fome e da desagregação econômica — para enumerar apenas as tragédias recentes daquele país, que permanece assistido por uma força de paz da ONU, desde 2004, em função de uma guerra civil — estariam sendo “importados” para “estruturar” e “engrossar o exército Lula-Stédile [alusão ao ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva e ao coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, João Pedro Stédile]”. O senador ruralista inquiriu o ministro Vieira se o Itamaraty já teria conseguido “identificar essa migração direcionada”, constrangendo até mesmo alguns de seus pares oposicionistas pelo clima anos 50 de suas preocupações.
Caiado foi lembrado por Gleisi Hoffmann que a legislação brasileira determina a concessão de refúgio humanitário, além de o País ter uma longa tradição de acolhimento de imigrantes. “Imagine se iríamos receber os haitianos, pessoas pobres, vindos de um país destruído, onde mostramos verdadeiramente o nosso compromisso com os direitos humanos, e não darmos nenhuma assistência, deixando-os ao relento”, contrapôs a senadora. “Nossa história é de defesa dos direitos humanos, do direito das pessoas, da dignidade humana. Nunca pactuamos [os governos petistas] com a exploração, nem com o trabalho escravo. Sempre fomos defensores dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana”.
A menção a trabalho escravo irritou Caiado, cuja família já foi relacionada em duas ocasiões na chamada “Lista Suja”, atualizada semestralmente pelo Ministério do Trabalho e que aponta os empregadores flagrados mantendo pessoas em condições análogas à escravidão. O senador ruralista sentiu o golpe e retrucou com novo ataque a Lula. “Têm-me chegado muitas denúncias em relação à construção de uma casa do ex-Presidente Lula, com 2.000 funcionários, em Atibaia, sem carteira assinada, num trabalho muito exigido, durante madrugadas a fio, sem dar a eles a condição mínima exigida pelo Ministério do Trabalho”. Caiado parece esquecer que Lula foi presidente da República, não um faraó construtor de pirâmides, para utilizar a mão de obra de duas mil pessoas nas obras do fictício imóvel.
Posições do Brasil sobre o Irã e a Síria
Além de assistir a exemplos do histrionismo que vem ameaçando fazer da CRE um sítio arqueológico da guerra fria, o chanceler Mauro Vieira compareceu à comissão para tratar da posição adotada pelo Brasil na votação de resoluções do Conselho de Direitos Humanos da ONU acerca de violações praticadas no Irã e na Síria, atendendo ao requerimento do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE). Nos dois casos, o Brasil optou pela abstenção. O ministro explicou que é praxe na ONU adotar essa posição para expressar desacordo com parte do conteúdo de uma resolução, além de questionar a conveniência ou oportunidade do texto proposto.
“No caso do Irã, o governo brasileiro reconheceu que passos importantes foram dados e que houve melhora nos direitos humanos, em relação ao quadro anteriore, quando nosso País votou a favor de resoluções condenando a situação iraniana”. Vieira explicou que o Brasil pretendia que o reconhecimento desses avanços fosse mencionado, o que não ocorreu. “Não aceitamos a politização do tema. Os direitos humanos são uma questão importante demais para servir a causas menores”, afirmou o ministro, destacando que o Brasil rejeita a prática de aprovar resoluções sobre determinados países, ignorando situações similares em outros, a depender do alinhamento de seus governos. “Isso coloca em xeque a credibilidade do sistema”, avaliou o ministro.
O Brasil não estava sozinho em suas críticas à resolução: dos 47 países que apreciaram o texto, apenas 20 votaram a favor. Os demais 27 votaram contra ou, como o Brasil, decidiram-se pela abstenção. De 2011 a 2015, as sucessivas resoluções de críticas ao Irã vêm perdendo apoio. O número de abstenções no Conselho de Direitos Humanos da ONU cresceu de 13 para 16 e o de votos contrários saltou de sete para 11. “Isso revela apoio decrescente à resolução e mostra que a nossa mudança de voto para abstenção está em linha com a tendência objetiva do conselho como um todo”, avalia Vieira.
Já no caso da Síria, Mauro Vieira ressaltou que o Brasil já manifestou publicamente sua condenação às violações dos direitos humanos naquele país e a convicção do governo brasileiro de que a crise síria não será resolvida militarmente. A resolução apresentada à ONU e em relação à qual o Brasil optou pela abstenção imputava exclusivamente ao governo da Síria a responsabilidade pelos atos violentos, ignorando o a presença de uma série de grupos estrangeiros que atuam no país, do quilate do Estado Islâmico e outras organizações terroristas. “Acusar cabalmente o governo da Síria por essas violações poderia funcionar como um estímulo aos grupos terroristas que atuam no país, já que estariam sendo eximidos de condenação”, explicou o chanceler.
“Condenar apenas um lado não contribui para a busca de solução política sustentável e duradoura para a crise. Pode dificultar ainda mais o entendimento entre as partes e incentivar o recrudescimento das violações realizadas por estes grupos.”, alertou o ministro.
Venezuela e assessor em reprise
Essa foi a segunda vez que Mauro Vieira foi ouvido pela CRE em audiência publica, desde sua posse no Ministério das Relações Exteriores, em 1º de janeiro. Ele já havia apresentado as prioridades e diretrizes da pasta aos senadores em 24 de março. Nesta quinta-feira, a bancada oposicionista na CRE voltou a reservar boa do tempo de suas intervenções para tratar da Venezuela, levando Vieira a reiterar o que já havia explicado na audiência realizada há apenas dois meses.
O ministro voltou a explicar que a posição brasileira sobre a Venezuela é tratar das questões daquele país “à luz da prioridade que atribuímos à integração regional”, com o objetivo máximo de “consolidar a democracia e assegurar a plena observância dos direitos humanos” na América do Sul. Ele lembrou que a cláusula democrática do Mercosul tem o objetivo de dissuadir rupturas ou ameaças de ruptura da ordem democrática entre os países-membros, “como nos casos de tentativa de derrubada, pela força ou por outros meios não constitucionais, de governos democraticamente eleitos”.
Ele voltou a descrever todas as tratativas e o acompanhamento permanente feito pelo Brasil em relação crise venezuelana, inclusive em vários encontros com representantes da oposição daquele país, que deverá ter eleições legislativas ainda este ano, pleito que será acompanhado pelos países da Unasul. “Para o Itamaraty, a celebração das eleições é essencial para a ordem constitucional democrática”, afirmou.
Apesar do transcurso de apenas dois meses entre as duas audiências, o senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) repetiu a pergunta que já havia feito ao ministro em março, sobre as funções do assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia. Novamente, Vieira explicou que o cargo ocupado por Garcia existe desde os anos 50 e tem como atribuição ser um canal de comunicação do chefe do Executivo com o Itamaraty e com outros interlocutores.”Ele é o intérprete, é o portador de documentos e de informações sobre questões da atualidade, leva notícias de grandes acontecimentos internacionais, imediatamente, à Presidenta”.
Cyntia Campos