Explodir pedras, perfurar rochas, construtores. Varrer ruas, limpar praias brasileiras, garis. Depenar galinhas, subir caixotes. Por que não vender bijuterias, artesanato? Esses são os destinos de professores, técnicos de enfermagem, mecânicos, contadores, pedagogos haitianos, senegaleses, dominicanos quando encontram o solo brasileiro.
Pessoas qualificadas e com um sonho de reconstruir suas vidas com o trabalho. Muito trabalho para reconstruir o que nem mesmo terremotos ou crises econômicas e sociais podem destruir: sua dignidade.
O destino desses sonhadores é um Brasil que parece aquecer cada vez mais sua economia, abrindo postos de trabalhos diversificados, muito bem anunciados entre os viajantes que aportam em Brasileia, Acre, que tem funcionado como porta de entrada para o país. Porta por onde já passaram mais de 6 mil imigrantes.
Desses tantos, alguns fazem questão de contar suas histórias. Correm, amotoam-se e desandam a falar, na língua que mais for compreensível – crioulo, francês, espanhol, inglês, wolof -, o importante é tentar fazer os outros entenderem cada passo de suas viagens, de seus diplomas, da vontade de encontrar um bom trabalho.
Paramos e ouvimos um rapaz de fala mansa, bem vestido, roupa quase passada a ferro. Croinchy Zache, 32, haitiano, nascido em Jaemel, pergunta em um inglês fluente: “Você sabe onde posso conseguir bons livros de português?”.
Seu sonho é trabalhar dando aulas ou como tradutor no Brasil. Estudou inglês na República Dominicana e, com o diploma na mão, diz: “No Haiti não é fácil arrumar um bom trabalho, mesmo que você tenha graduação”. Ele aponta para mais dois amigos – um contador e outro turismólogo -, todos com o diploma à mostra. E sentencia: “Estou aqui para mudar de vida”.
Em meio à confusão de braços e bocas na espera de uma marmita para o jantar, Chisnel Laventures pensa no passado recente de seu país e em um futuro próximo para si. Ele tira fotos dos companheiros de abrigo famintos e comenta: “Quero um dia lembrar dessas dificuldades”. Com um olhar esperançoso, continua: “Quando estivermos de volta com a dignidade que tínhamos”.
Órfãos da pátria haitiana
Laventures é haitiano, como a maioria dos 6 mil imigrantes que passaram pelo Acre. Um país destruído por um terremoto em janeiro de 2010, mas historicamente ainda mais abalado por sua economia e desigualdade social.
Apesar do seu protagonismo como a primeira colônia a se tornar independente das metrópoles europeias, em 1804, o Haiti é hoje o país mais pobre da América Latina. Antes mesmo do desastre de
Somado à miséria extrema, a questão política esteve sempre instável entre 1820 e 1996, razão pela qual o país tem sofrido grandes impactos regionais devido a processos migratórios. Conflitos internos deslocaram mais de 300 mil pessoas para fora de suas cidades.
Entre 1991 e 1994 os Estados Unidos foram foco de uma onda migratória que movimentou 68 mil pessoas. Deixaram o Haiti e com apenas um dia de barco chegavam ao mais poderoso país do mundo. Outros 30 mil foram para a República Dominicana.
Brasil, nova realidade e oportunidades
O amor e a alegria. A esposa e duas filhas ficaram para trás há um ano para Vilsaint Letesse. Ficaram
Nesse cenário, Letesse resolveu procurar uma solução para a família. Juntou o dinheiro que tinha, reuniu parentes e conseguiu ao todo 3 mil dólares. Era a chance para embarcar em uma rota que se consolidava. Passou pela República Dominicana, Panamá, Peru e chegou até o Brasil por Brasileia em 4 de janeiro de 2012.
Não demorou muito e o pedagogo, que sonhava um dia estudar filosofia e bioquímica, foi contratado para explodir pedras. “Eu perfuro, coloco a dinamite, e buuuum!”, ilustra. Ele está há um ano e alguns meses trabalhando na usina hidroelétrica de Santo Antônio, em Rondônia.
Mas o que fazia o caribenho empregado em Brasileia? Ele estava ali para buscar parte de sua felicidade – sua esposa acabara de chegar ao Brasil. Lá estava sorridente Vilsaint Mirlene Charls. Letesse fez logo questão de levá-la ao seu hotel, que pôde pagar tranquilamente, graças ao salário mensal de um emprego estável. Ele já está com um contrato de mais um ano com a construtora.
A meta agora é arrumar a nova casa, alugada especialmente para a chegada de sua esposa, e trazer as duas filhas, de 9 e 6 anos. “Elas estão com as duas avós, mas devem estar chorando”, diz o pedagogo que detona rochas. “Mirlene chorava de saudade todos os dias.” A esposa confirma com um sorriso tímido.
O casal segue esperançoso que o novo país lhes garanta uma nova chance de viver, de crescer e de criar suas crianças. Ao menos podem em junho deste ano comemorar os 10 anos de casados, “A festa vai ser simples, mas estaremos juntos”, diz, feliz da vida.
O abrigo
O espaço, cedido pelo governo do Estado, tem capacidade para 200 pessoas, mas nas últimas semanas está abrigando 1.300. Um mundo de línguas e histórias, “bonjour” nas primeiras horas do dia, “buenas tardes” à medida que o calor aumenta, “merci” sempre, “gracias” ainda mais… O que poderia se tornar um caos e revolta ainda maior transparece polidez e alguns sorrisos.
Manhã cedinho e pé no chão, lá se vão lavar a roupa da semana, escovar os dentes, despertar para mais um dia de luta. Em meio ao charco que rodeia o abrigo, o risco para transmissão de doenças. Há aqueles que trabalham para deixar o ambiente um bocadinho mais limpo.
Direto de L’Estère, Hait, Trissaint Ezechiel varre com simpatia a sujeira de seus companheiros. Simpatia em pessoa, Ezechiel informava sobre seus passos: lá ia ele tentar o café da manhã – pão e café com leite -, fornecido pelo governo do Estado.
Mesmo que as condições não sejam as melhores, o sorriso era recorrente. O lugar transparece esperança, como se aquela lama, colchões no chão, mil corpos dividindo o mesmo ar poeirento fossem o último estágio de sofrimento antes de uma nova vida.
O abrigo também é lugar de ouvir histórias. René Guerson, 31, já conhecia o Brasil, ainda mais a zona rural. Em 2010 ele foi um dos jovens haitianos escolhidos pelo Movimento Sem-Terra para conhecer a cultura camponesa.
No Brasil, Guerson teve oportunidades de vivenciar o campo
Passado um ano de experiência, voltou ao seu país, mas, insatisfeito com as oportunidades, juntou dinheiro trabalhando com o que aprendera e se mandou para o Brasil novamente, agora pela rota ilegal. O Brasil passou a conceder 1.200 vistos legais por ano para os haitianos, porém, a demanda cresce a cada dia, e a maioria prefere passar 15 dias viajando para tentar a sorte na fronteira Peru-Brasil.
Grupos vindos de outros países têm se formado – senegaleses, dominicanos e um rapaz de Bangladesh. Logo pela manhã, um grupo se reúne para ler o Corão, livro sagrado dos islamismo. São do Senegal, e um deles afirma: “Nós, senegaleses, não temos problemas, só queremos trabalhar, tudo é trabalho”.
Eheilham Arimar-Thiam, 34, é como se fosse um líder no grupo. Fala português e está sempre à frente na conversa. O motivo da vinda de todos é só um: “Nosso país é muito pobre, não tem guerra, mas também não tem emprego”. Passou sete meses estudando o português, viajou vários países trabalhando e agora pretende chegar a São Paulo para encontrar o irmão.
As mulheres
“Sou enfermeira e quero trabalhar com o que eu sei. As empresas só contratam homens”, suplica Liceron Marie, 26, vinda de Delmas, Haiti. Uma realidade ainda mais dura para as mulheres, pois a maioria das empresas que recrutam os imigrantes é de construção civil.
Um estudo que envolve profissionais do Brasil, Equador, Peru, Bolívia e Haiti, realizado por organismos nacionais e internacionais já está sendo feito. No caso do Brasil, a Organização Internacional para as Migrações (OIM), ligada às Nações Unidas, vai fazer parceria com o Ministério do Trabalho e Emprego.
O coordenador no Brasil é o professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais Duval Fernandes. O mercado de trabalho feminino já está entre os temas. “Elas não vão para a construção civil [maior contratante]. A possibilidade é conseguir trabalho em profissões como empregadas domésticas ou áreas de serviços”, diz o professor.
Outro ponto importante é a expectativa dos que chegam aqui. Muitos se submetem aos “coiotes” (espécie de atravessadores humanos), com a promessa de ganhar um salário de até R$ 10 mil. Mas a realidade encontrada é outra. A enfermeira Liceron está há um mês em Brasileia, soube de oportunidades a partir de um primo, que conseguiu chegar até São Paulo.
Uma das mulheres é contadora e mostra seu cartão comprovando a formação. Helas Rose-Mythe está há mais de um mês tentando ter acesso a sua documentação para permanecer legalmente no país e tentar a sorte. Ela, como os tantos e tantos seres humanos, dignos de uma boa vida, tentam o mínimo no Brasil.
Agência de Noticias do Acre