Alegava que cumpriu o seu dever, e o que o dever era o imperativo categórico de Kant. Ao afirmar isso, parecia a Arendt que ele era incapaz de imaginar que qualquer interlocutor imediatamente lhe responderia que roubar e matar milhões de pessoas são atos logicamente incompatíveis com a categoria “dever”. E que não poderia haver tréplica possível a este argumento. Que ninguém escolhe viver em uma sociedade de ladrões e assassinos, o que é uma implicação primária do imperativo categórico. Ou de qualquer sistema inteligível de moralidade.
Arendt percebe que Eichmann é incapaz de raciocínio moral minimamente superior à noção de cumprimento de ordens. Que seus juízos são rudimentares. Que na sua “filosofia moral” as consequências das ordens recebidas são irrelevantes, mesmo que milhões de pessoas estejam morrendo. Podemos imaginar que um transporte bem sucedido de judeus para Auschwitz terá sido efusivamente festejado, e que Eichmann terá brindado com champagne seu sucesso funcional em vários momentos, com subalternos e superiores hierárquicos.
Eichmann tinha um intelecto que lhe permitia organizar o transporte compulsório de milhões de presos. Mas em sua defesa era incapaz de formular um raciocínio moral que fosse além do conceito de cumprimento de ordens.
“A acusação deixava implícito que ele não só agira conscientemente, coisa que ele não negava, como também agira por motivos baixos e plenamente consciente da natureza criminosa de seus feitos. Quanto aos motivos baixos, ele tinha certeza absoluta de que, no fundo de seu coração, não era aquilo que se chamava de innerer Schweinehund”, um bastardo imundo; e quanto à sua consciência, ele se lembrava perfeitamente de que só ficava com a consciência pesada quando não fazia aquilo que lhe ordenavam – embarcar milhões de homens, mulheres e crianças para a morte, com grande aplicação e o mais meticuloso cuidado. Isso era mesmo difícil de engolir. Meia dúzia de psiquiatras haviam atestado sua “normalidade” – “pelo menos mais normal do que eu fiquei depois de examiná-lo”, teria exclamado um deles, enquanto outros consideraram seu perfil psicológico, sua atitude quanto a esposa e filhos, mãe e pai, irmãos, irmãs e amigos, “não apenas normal, mas inteiramente desejável” (Eichmann em Jerusalém, Companhia das Letras, pag. 36/37).
Um homem normal. Dedicado à família, leal a seus amigos, cumpridor de seus deveres. A banalidade: sua máxima instância moral era o que lhe diziam ser o dever. Qual o sentido do dever que lhe impunham? Ele não ia até esse ponto. Desse dever resultariam mortes? Ele não ia até esse ponto. Mortes horrendas, pessoas dizimadas como moscas? Ele não ia até esse ponto. Algumas reações ao caso Pinheirinho invocam as lições de Hannah Arendt.
As banalidades: há uma ordem social fundada na propriedade. Há regras sobre a propriedade. Onde vamos parar se todo mundo começa a invadir propriedades? Ordens devem ser cumpridas. A juíza cumpriu seu dever. O presidente do Tribunal, que se empenhou pessoalmente a ponto de remeter para lá um assessor, cumpriu seu dever. A Polícia Militar cumpriu seu dever. O governador cumpriu seu dever. Mas impedir que 6 mil pessoas se vissem, de uma hora para outra, de surpresa e praticamente na calada da noite, arremessadas de suas casas para o nada, isto não era dever de ninguém.
A juíza dá entrevista exultante com o resultado da operação: “a operação me surpreendeu positivamente. A Polícia Militar se preparou, se planejou durante mais de quatro meses (…) desempenhou um serviço admirável que é motivo de orgulho pra todos nós (…) A Polícia Militar agiu com competência e com honra mesmo”
Quatro meses! Em nenhum momento desses 4 meses ela se deteve para pensar que, senhora da jurisdição, estava ao seu alcance dar ao caso uma solução que não resultasse naquela inominável violência, naquela barbárie? Que havia precedentes jurisprudenciais, que estão sendo publicados às dúzias nas redes sociais? No entanto, tudo que ela diz agora é que a Polícia Militar prestou um serviço “motivo de orgulho”: a Polícia Militar cumpriu seu dever. Ela cumpriu seu dever.
Na Folha de S. Paulo de 28 de janeiro, o advogado João Antonio Wiegerinck nos ensina – de forma tristemente banal – que“direito à propriedade é um direito tão antigo quanto o direito à dignidade da pessoa humana na maior parte das constituições ocidentais. Como princípios constitucionais que são, inexiste uma hierarquia científica entre eles ou os demais princípios (…) a retirada de invasores de uma propriedade adquirida honestamente e pela qual se paga tributos ao Estado é um ato lícito e voltado à boa observância da ordem (…) o que todo cidadão de bem deseja é que a sociedade em que vive ofereça estabilidade na manutenção das regras a serem observadas por todos, sem favorecimentos ou discriminações. Quem tem consciência de estar vivendo ilegalmente sabe que um dia isso será cobrado. Tomara que de agora em diante com mais dignidade e prevenção.”
O que o articulista diz não vai além do conceito de ordem, legalidade e propriedade. A realidade social, a inexistência de habitações, a miséria de quem se vê obrigado a morar onde consegue e não onde quer, tudo isso está ausente do juízo do articulista. A banalidade do seu juízo ignora a ideia de um sentido e de uma racionalização da propriedade. Na frase “o que importa para o cidadão de bem é a estabilidade e a manutenção das regras”, vejam a associação de ideias entre estabilidade, manutenção e bem.
Para denunciar a trivialidade dessa associação, basta perguntar: qual o sentido desta “estabilidade” e desta “manutenção”? Por que elas são, assim sem mais, o bem (sutilmente encaixado na expressão “cidadão de bem”)? Em outros termos: para ele, bem é igual estabilidade e manutenção de uma regra. Bem é cumprir o dever. O que resulta desse dever? Ele não chega a esse ponto.
A chave de ouro do articulista é: os culpados são os moradores. Viviam ilegalmente e deveriam saber que um dia seriam cobrados. Eu mesmo estaria louco de vontade de participar de uma invasão e viver “ilegalmente”. Não veria a hora de largar meu apartamento e invadir um terreno privado, construir um barraco e depois, com minhas próprias mãos, uns dois ou três cômodos de alvenaria e lá amontoar meus filhos. Mas eu e milhões de brasileiros não fazemos isso porque somos “cidadãos de bem”. Os moradores do Pinheirinho são delinquentes. Como vivem na ilegalidade, agora foram cobrados. Bem feito. As pessoas que defendem a perversidade social não são burras.
Elas são hegemônicas na estrutura social e política do país. Defendem interesses. São competentes e preparadas. Mas não há como defender perversidades sociais sem argumentos banais. O mal, na sua lógica intrínseca, é moralmente burro, como percebeu Hannah Arendt.
Marcio Sotelo Felippe é procurador do Estado de São Paulo
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