Ao pensar sobre a possibilidade de um cidadão comprar remédios em supermercados, armazém, empório, loja de conveniência e correlatos, vejo que não há porque ser favorável. Ainda que sejam só aqueles que dispensem receita médica. Claro que seria bom, em tempos de rotina corrida, a família abastecer sua casa com todo tipo de mercadorias num só lugar. Também o maior número de pontos de venda poderia render menor preço. Mas entendo que isso não compensa o risco para a saúde e a vida das pessoas.
Diante da evidente possibilidade de que se dissemine o consumo indiscriminado, seguramente há vantagem em facilitar o acesso da população ao medicamento, sem considerar os perigos do consequente aumento no consumo. A preocupação é de que a presença do remédio nas prateleiras das lojas, ao alcance das mãos inclusive de crianças, incentive a automedicação, estimule as pessoas a praticarem, sem orientação, por conta própria, o consumo indiscriminado desses produtos.
E remédio, obviamente, é item de produção complexa, com propósito bastante diferente dos também coloridos balas, chocolates, bolachas, pirulitos que se destacam nas estantes dos corredores por onde famílias inteiras gastam horas, todos os meses. Não é à toa que a Lei nº 5.991, de 1973, mas ainda atual, estabelece regras a serem seguidas pelas farmácias e drogarias, tanto em relação ao que podem comercializar, quanto à necessidade de um profissional habilitado para responder tecnicamente pelo estabelecimento.
Os medicamentos, indiscriminadamente, são a segunda maior causa de óbitos causados por intoxicação humana, segundo os dados mais recentes do Sistema Nacional de Informações Toxico Farmacológicas (Sinitox), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Em 2009, 17% do total de 409 mortes foram resultado da ingestão de remédios. Desses casos, 61% envolveram adultos em idade produtiva, com entre 20 anos e 59 anos – e foram 8 as vítimas com menos de quatro anos. No Brasil, só os agrotóxicos causam mais óbitos por intoxicação que os medicamentos.
E é um engano pensar que a dispensa de receita médica torna um comprimido ou um xarope inofensivo. Um medicamento, quando associado a outro, pode causar grandes males à saúde e, inclusive, levar à morte. Por exemplo, no caso da dengue, o uso na fase inicial da doença de um -supostamente- inocente anti-inflamatório pode dificultar o diagnóstico clínico porque funciona como paliativo dos sintomas. Também para essa doença, a ingestão de um comprido de acido acetilsalicílico (AAS) potencializa o risco de hemorragias.
A diversificação da natureza dos pontos de venda implica, ainda, risco maior de que medicamentos falsificados cheguem ao consumidor. Pequenos estabelecimentos, para compra remédios a custo mais baixo, poderão se sujeitar à compra de mercadorias falsificadas, feitas, na melhor das hipóteses, de farinha. Esse tema está, inclusive, presente em três projetos de lei que apresentei e que hoje tramitam no Senado Federal.
Defendo, também, medidas que assegurem o consumo racional de medicamente, por meio de programas de conscientização dos consumidores e dos profissionais responsáveis pelo fornecimento desses produtos. Permitir que estabelecimentos comerciais, alheios ao serviço farmacêutico, vendam medicamentos, sem se submeterem a exigências técnicas, é desconsiderar os avanços já alcançados pela regulação sanitária brasileira.
HUMBERTO SÉRGIO COSTA LIMA, 54, médico, professor e jornalista, é senador pelo PT-PE. Foi ministro da Saúde (2003 a 2005, governo Lula)