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Artigo: PEC 186 ameaça novo Fundeb e retroage na garantia do direito à educação, por Bruno Costa 

A Proposta da Bancada do PT no Senado propõe o pagamento de um auxílio emergencial de R$ 600,00 durante seis meses, sem condicionar a implementação do auxílio a qualquer tipo de medida de austeridade ou a qualquer retrocesso social.
Artigo: PEC 186 ameaça novo Fundeb e retroage na garantia do direito à educação, por Bruno Costa 

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O direito à educação, consagrado no art. 6º da Constituição Federal como um direito social, necessita ser compreendido como um direito que fundamenta o Estado Democrático de Direito, imprescindível à consecução dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, quais sejam: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Não por acaso, nossa Carta Política busca progressivamente assegurar a materialização do direito à educação, tornando a educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria (Emenda Constitucional nº 59, de 2009); estabelecendo como competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação (Emenda Constitucional nº 85, de 2015); consagrando a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola e a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais como princípios (incisos I e IV do art. 206 da CF); e verbalizando o dever do Estado com a garantia de educação
infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade (inciso IV do art. 208 da CF).

Ademais, a Constituição Federal explicita que o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo, e que o não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente (§§ 1º e 2º do art. 208 da CF). Para tornar possível a consecução dos referidos comandos e princípios, constituiu-se, a partir de um intenso processo de mobilização social que atravessou décadas, um arcabouço constitucional que fundamenta a garantia do direito à educação. Esse arcabouço está consagrado justamente no art. 212 da Constituição Federal:

Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.

A vinculação de receitas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios à educação fundamenta, portanto, a efetivação do direito público subjetivo, assim como fundamenta uma das principais conquistas da educação básica brasileira: a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Não por acaso o parlamento brasileiro, diante do término da vigência do antigo Fundeb, promulgou a Emenda Constitucional nº 108, de 26 de agosto de 2020, inscrevendo o Fundeb no corpo permanente da Constituição Federal e aprimorando seu modelo redistributivo, de modo a reduzir as desigualdades educacionais e a equalizar o investimento por aluno em todo o país.

E como o Fundeb foi concebido? Como uma subvinculação da vinculação inscrita no art. 212 da Carta Política, assegurando uma participação mais efetiva da União no financiamento da educação básica pública, de modo a elevar a qualidade do ensino e a equalizar o investimento por aluno. Ademais, o Fundeb, como subvinculação da vinculação constitucional, tornou-se a base da valorização dos profissionais da educação, sendo imprescindível à garantia do piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da educação básica, instituído pela Lei nº 11.738, de 16 de julho de 2008.

O novo Fundeb (Emenda Constitucional nº 108, de 26 de agosto de 2020) eleva gradativamente a complementação da União dos atuais 10% do total dos recursos aplicados por Estados e Municípios em manutenção e desenvolvimento do ensino via Fundeb, para 23%, com aproximadamente 5% dos recursos da complementação sendo vinculados à educação infantil, de modo que possamos reduzir o nosso déficit no acesso à creche, uma vez que 65% das crianças de 0 a 3 anos ainda não têm acesso à creche em nosso país.

A complementação da União, no âmbito do novo Fundeb, possui três modalidades, e uma das novas modalidades é denominada Complementação Valor Aluno Ano Total (VAAT), pois leva em consideração o total das receitas dos Estados, Distrito Federal e Municípios vinculadas à educação, e não apenas as receitas subvinculadas através do Fundo, o que tornará possível uma maior equalização do investimento por aluno no país. A desvinculação das receitas da educação, portanto, ameaça não apenas a operacionalização do novo Fundeb, mas também os fundamentos da educação como direito público subjetivo.

Se a desvinculação das receitas da educação estivesse em vigor em 2017 e o Fundeb fosse a única política de vinculação de receitas à educação inscrita no texto constitucional, a educação pública poderia ter perdido cerca de R$ 90 bilhões em custeio e investimentos no referido ano, na contramão da garantia do direito à educação e das metas e estratégias do Plano Nacional de Educação (2014-2024), conforme estimativas de pesquisadores da FINEDUCA.

A desvinculação das receitas da educação retroage tanto na garantia do direito à educação que pode ser considerada uma medida tão nefasta quanto a Emenda Constitucional nº 95, de 2016. O novo regime fiscal não abrange Estados, Distrito Federal e Municípios, e ao mesmo tempo contempla, no art. 110 do ADCT, um mecanismo de correção das aplicações mínimas da União em ações e serviços públicos de saúde e em manutenção e desenvolvimento do ensino.

Cabe ressaltar que o parecer apresentado pelo relator da PEC 186/19 também revoga o referido dispositivo do ADCT. Registre-se ainda que a pretendida contrarreforma constitucional é deflagrada em um contexto de redução progressiva do orçamento discricionário do Ministério da Educação, que dia após dia perde capacidade de cumprir suas funções e prerrogativas constitucionais, como a função redistributiva e supletiva, inscrita no § 1º do art. 211 da CF, a ser materializada mediante assistência técnica e financeira aos Estados, Distrito Federal e aos Municípios, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino. O orçamento discricionário do MEC, em um contexto de vinculação de receitas e de correção das aplicações mínimas pelo IPCA (Art. 110 do ADCT), está regredindo ao patamar de uma década atrás, o que tende a se agravar sobremaneira em um cenário de desvinculação de receitas e de ausência de correção das aplicações mínimas pelo IPCA.

Conforme ressalta José Marcelino de Rezende Pinto (USP), no artigo intitulado O financiamento da educação na Constituição Federal de 1988: 30 anos de mobilização social, “A preocupação de assegurar um amparo legal para o financiamento da educação tem uma longa história. Como apontam Oliveira e Adrião (2002), já em 1647, na então Colônia de Massachusetts, Estados Unidos, uma lei determinava que toda cidade com 50 residências deveria nomear e pagar os salários de um professor de leitura e escrita. Já no Brasil, a sistemática de garantia de recursos para a educação também tem uma longa história. Didaticamente, ela pode ser dividida em três períodos, o último deles com duas complementações importantes. O primeiro corresponde ao monopólio dos jesuítas, que durou de 1549 a 1759, quando a ordem religiosa foi expulsa de Portugal e do reino. O segundo, em que se contou com uma fonte específica na forma do Subsídio Literário ou com dotações orçamentárias arbitrárias para a educação. E o terceiro momento, que nasce em 1934 com o estabelecimento da vinculação constitucional de recursos para a educação e que, salvo interrupções nos períodos ditatoriais, permanece em vigência até hoje”.

Outrossim, em nota dirigida às Senadoras e aos Senadores da República, a Comissão Permanente de Educação (COPEDUC), do Grupo Nacional de Direitos Humanos (GNDH), a 1ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (1ª CCR/MPF) e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF) manifestam profunda preocupação com as propostas em discussão no âmbito da PEC 186/2019, que tramita no Congresso Nacional:

A referida PEC, ao extinguir em seu art. 4º, a destinação constitucional de recursos mínimos para a Educação por parte da União, dos Estados e dos Municípios, além de representar um retrocesso em termos de política educacional para o país, trazida pela Constituição de 1988, tem como consequência danosa o esvaziamento de todas as conquistas históricas alcançadas desde então nessa área, como a do novo FUNBEB, aprovado recentemente pela Emenda constitucional n. 108/2020. Com a aprovação da referida PEC n.186, a natureza permanente da qual foi dotado não representará mais nada para o financiamento da educação, considerando que a matriz constitucional na qual se apoia perderá sua efetividade, colocando em risco o próprio direto à educação previsto nos arts. 205, 206, 207, 208, 209, 210, 211, 212, 213 e 224 da nossa Carta Magna. […]

Ademais, a pretensa medida incluída na referida PEC, fere drasticamente dispositivo de proteção de normas constitucionais consideradas essenciais à garantia de direitos, denominadas cláusulas pétreas. A emenda, diversamente do que afirmam incautos discursos, não preserva o núcleo essencial da cláusula pétrea. Ao contrário, destrói o princípio constitucional
expressamente previsto no art. 34, uma vez que não apenas modifica o instituto criado pelo Constituinte originário, mas o extermina. Nem mesmo a proposta alternativa de “unificação” dos pisos constitucionais da saúde e da educação pode ser aceita, uma vez que, como a pandemia tem demonstrado, a saúde possui necessidades e demandas crescentes e emergenciais que, se colocadas em uma desnecessária disputa orçamentária com a educação, implicarão, inexoravelmente, prejuízos a esta. Tal conclusão, além de lógica, foi comprovada por estudo realizado pelo IPEA em 2020, que demonstrou que “em um contexto de concorrência por recursos, os gastos em saúde serão mais resilientes, uma vez que tendem a ser menos elásticos, e, por conseguinte, os recursos para a educação estão sob maior risco de perdas.”

Nossa Constituição possui quatro grandes eixos pétreos: voto universal/secreto/livre/periódico, pacto federativo, separação de poderes e direitos e garantias fundamentais. Para todos, há proteção de custeio mínimo que não podem, em hipótese alguma, ser seletivamente extintos, como pretende o texto reformador proposto. Com efeito, a proposta em tramitação
no Congresso Nacional segue na contramão do fortalecimento do ensino universal e gratuito conforme preconizado pela própria Constituição Federal, concorrendo sobremaneira para a precarização da educação pública e para a manutenção da dramática desigualdade social existente em nosso País.

Não podemos assemelhar cada vez mais o período de perplexidade que vivenciamos a períodos de exceção que a sociedade brasileira, não sem profundo sofrimento, atravessou no pretérito. A trajetória da vinculação de receitas à educação no texto constitucional se confunde com a trajetória da garantia do direito à educação pública, com padrão mínimo de qualidade e valorização profissional.

É dever do Estado brasileiro assegurar um auxílio emergencial à população gravemente afetada pelos impactos econômicos da pandemia, com valor capaz de assegurar a subsistência das famílias mais pobres, assim como é dever do Estado viabilizar um processo de vacinação em massa da população, sem o qual não será possível deflagrar um processo de retomada do crescimento econômico com geração de emprego e renda.

Condicionar a implementação do auxílio emergencial à aprovação de uma contrarreforma constitucional, em detrimento do direito à educação e do direito à saúde, no momento em que o Brasil atinge a lamentável marca de 250 mil mortes em decorrência da Covid-19, significa aprofundar o abismo que separa a sociedade política da sociedade civil, potencializando a crise de representatividade do nosso sistema político.

A Proposta de Emenda à Constituição n° 2, de 2021, apresentada pela Bancada do PT no Senado Federal, propõe o pagamento de um auxílio emergencial de R$ 600,00 durante seis meses, prorrogáveis por mais seis meses, sem condicionar a implementação do auxílio a qualquer tipo de medida de austeridade ou a qualquer retrocesso social. Prevê a possibilidade de uso do superávit financeiro apurado em balanço em dezembro de 2020 de um conjunto restrito de fundos, equivalente a aproximadamente R$ 130 bilhões, e ressalva as despesas com o auxílio emergencial do teto de gastos, da meta de resultado primário e da regra de ouro. É preciso derrotar o processo desconstituinte dos direitos sociais em curso no Brasil desde o golpe de 2016 através de uma vigorosa mobilização social.

Por Bruno Costa – Assessoria da Liderança do PT no Senado Federal

 

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