Em novembro de 2001, dois meses após o ataque às torres gêmeas e pouco menos de dois anos depois do espetacular fracasso da tentativa de lançar a “rodada do milênio”, em Seattle (EUA), ministros encarregados do comércio de todo o mundo se reuniram em Doha, capital do Qatar, com o objetivo de promover um amplo ciclo de negociações comerciais, que veio a ser conhecido como a “rodada de Doha”.
Havia entre os membros da Organização Mundial do Comércio amplo consenso sobre a necessidade de dar cumprimento aos mandatos originários da Conferência de Marrakech, em 1994 (quando foi criada a OMC), especialmente o de aprofundar as negociações sobre liberalização do comércio agrícola. A pressão por um resultado positivo era ainda maior em função dos temores de que a instabilidade política gerada pelo ataque terrorista de 11 de setembro levasse a economia mundial à estagnação ou mesmo à recessão.
Foi nesse quadro —e em plena pandemia da Aids— que o Brasil liderou o movimento das nações em desenvolvimento para que a organização reconhecesse o direito dos países de adotar medidas de saúde pública que poderiam —na aparência, pelo menos— se contrapor ao acordo sobre propriedade intelectual e comércio (“Trips”, na sigla em inglês), que fora praticamente imposto pelas nações ricas durante a Rodada Uruguai.
A disputa em torno desse tema foi tão crucial que de sua solução dependeria o êxito da reunião como um todo. Ao final, apesar da fortíssima pressão das indústrias farmacêuticas, que chegaram a buscar reverter posição já aceita pelo representante do governo norte-americano, foi aprovada a Declaração de Doha sobre Trips e Saúde, até hoje citada em todos os documentos internacionais relevantes, inclusive o que estabeleceu os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, também conhecido como Agenda 2030, firmado por todos os chefes de governo dos membros da ONU em 2015.
Essencialmente, a Declaração de Doha reconhece o direito de cada país de, por meio de um instrumento conhecido como licença compulsória (para produzir ou para importar/exportar), obter medicamentos genéricos, sem pagamento dos astronômicos royalties cobrados pelas multinacionais da saúde.
Embora a Declaração de Doha praticamente isente os países que apliquem licença compulsória de retaliação no âmbito do sistema de solução de controvérsias da OMC, subsistem duas ordens de problemas. De um lado, os países detentores de patentes buscam valer-se de outros meios (como acordos bilaterais de livre comércio, por exemplo) ou ameaças políticas, como corte de ajuda, para pressionar os potenciais usuários. Por outro, a própria legislação dos países em desenvolvimento, em geral adotada sob influência do poderoso lobby dos grandes laboratórios, estabelece condições e procedimentos que, na prática, dificultam a quebra das patentes. Daí a proposta da Índia e da África do Sul de suspensão pura e simples das patentes durante a pandemia.
O grande mérito do presidente Joe Biden ao apoiar, em essência, essa proposta (endossada por inúmeros ex-chefes de governo e cientistas consagrados) é o de “dessacralizar” o privilégio concedido aos detentores das patentes, relativizando-o em face de um valor mais alto: a vida humana.