O Brasil, estarrecido, acompanhou a denúncia de superfaturamento na compra da vacina indiana Covaxin, que ganhou corpo na semana passada, com o depoimento de um servidor público de carreira à CPI da Covid, no Senado.
Para qualquer pessoa que não seja sociopata, é difícil digerir a constatação de que o governo Bolsonaro possa ter usado uma doença mortal e altamente infecciosa para fazer negócios. Essa digestão fica ainda mais árdua com a descoberta de que cada uma das nossa vidas valia um dólar na tabela da propina para compra de imunizantes.
Em meio ao horror que nos assola, a denúncia feita pelo servidor de carreira do Ministério da Saúde confirma a podridão que está por trás da “gestão da pandemia” no governo Bolsonaro. Mas também nos chacoalha, cobrando atenção a outras tenebrosas transações em curso no País. Por exemplo, a reforma administrativa.
Pronta para ser votada na Câmara, a proposta de Emenda Constitucional da reforma administrativa vem sendo vendida por seus apoiadores como mais uma panaceia para os “males do Brasil” — como já foram a reforma trabalhista uberizante e a reforma da Previdência.
Seria, dizem, o “fim dos privilégios” de uma suposta casta de príncipes sustentados pelo Estado brasileiro, os servidores públicos—categoria de trabalhadores cujo salário médio é de R$ 4 mil.
Mas a quem interessa desmontar a capacidade do Estado de oferecer serviços públicos à população? A quem interessa precarizar as garantias mínimas oferecidas a servidores de Estado, abrindo a porta para lotar as repartições com servidores de governos?
Uma pista: se não fosse servidor estável, será que Luis Ricardo Miranda, chefe de importação do Departamento de Logística em Saúde do Ministério da Saúde, teria tido condições de denunciar o esquema Covaxin à CPI da Covid? Os fiscais concursados do Ibama e o delegado concursado da Polícia Federal teriam podido denunciar o contrabando de madeira que derrubou o ministro Ricardo Salles?
Depreciar os serviços públicos e o funcionalismo não é novidade no Brasil. A surrada piadinha sobre o paletó pendurado no encosto da cadeira do funcionário ausente que o diga. O mito dos “marajás” sustentados por dinheiro público já ajudou a eleger muitos moralistas sem projeto.
No segundo país mais desigual do mundo, tem gente que não se incomoda com o lucro dos bancos, com os milionários que não pagam impostos ou com queira fixar em um dólar o valor da vida.
Revoltante, para essa gente, é pagar Bolsa Família a quem tem fome, assegurar um mínimo de assistência à saúde por meio do SUS e oferecer ao filho do pobre algum futuro com uma vaga na Universidade pública.
O segundo país mais desigual do mundo precisa muito de serviços públicos. E quem presta esse serviço são os servidores que o discurso ultraliberal não tem pudor de demonizar.
Para um país que precisa tanto de serviços públicos, estamos gastando menos do que outras nações. Em relação às despesas do Estado Brasileiro, o gasto com a folha de pagamento do funcionalismo público é de 20,82%, percentual inferior à média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que é de 24%.
Além do mais, se a ideia é economizar, por que atacar os direitos dos servidores que ganham menos, ampliando o fosso entre a massa do funcionalismo e as categorias “aristocráticas” do serviço público, intocadas pela reforma?
Os entusiastas da reforma administrativa podem até falar de gastos, mas eles miram, de verdade, é na possibilidade de centralizar decisões em chefias nomeadas por governos.
Sonham com burocratas exorcizados do dever de servir às instituições, e desobrigados de obedecer os princípios da legalidade, da impessoalidade, da publicidade, da eficiência e da moralidade, que, diz a Constituição, devem pautar a atuação do servidor público.
Artigo originalmente publicado no Congresso em Foco