Não é novidade que o governo Bolsonaro estabeleceu uma série de pré-requisitos para selecionar os sucessivos ministros da educação. Quando analisamos a gestão de Ricardo Vélez Rodríguez, Abraham Weintraub e Milton Ribeiro, logo identificamos algumas características comuns: descompromisso com a educação pública; elitismo travestido de meritocracia; desconhecimento da gestão pública; completa submissão ao ideário bolsonarista no plano cultural e à cartilha ultraneoliberal no plano econômico.
Não vale a pena reproduzir as aberrações ideológicas verbalizadas por Rodríguez, Weintraub e Ribeiro, apenas recordar que essas caricaturas do neoconservadorismo aceitaram cumprir a missão dada por Bolsonaro quando assumiu a Presidência da República: “desconstruir muita coisa”, “desfazer muita coisa”.
Na área da educação, desconstruir muita coisa sempre significou: eliminar a vinculação constitucional da receita de impostos à manutenção e desenvolvimento do ensino (Plano Mais Brasil); consequentemente, eliminar a subvinculação da receita de impostos à educação básica (deixar expirar o Fundeb e não aprovar um novo Fundeb); reverter o processo de expansão e democratização do acesso ao ensino superior público (Teto de Gastos, Future-se, desconstrução do ENEM, do SISU e da Lei de Cotas); esvaziar o currículo da educação básica, em especial do ensino médio, através da implementação da Reforma do Ensino Médio, da Base Nacional Comum Curricular e do processo de Militarização Escolar; descontinuar o Proinfância em benefício da mercantilização da educação infantil através de políticas de vouchers; substituir o pleno desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania pela semântica da Escola sem Partido; dinamitar as bases da pesquisa básica e da produção científica e tecnológica nacional, em benefício da dependência externa e da preservação do poder político de uma burguesia agroexportadora; e combater os valores e as práticas da educação popular, o que se traduz mais explicitamente no combate ao legado de Paulo Freire.
O que está acontecendo na condução do ENEM 2021 não é apenas a censura de itens do Banco Nacional de Itens, não é apenas a violação do sigilo do Banco Nacional de Itens e das provas do ENEM, não é apenas o assédio moral praticado contra servidores do INEP, não é apenas a transformação da Polícia Federal em polícia política. Tudo isso está acontecendo e é muito grave, ameaçando a integridade do ENEM e os anseios de mais de 3 milhões de candidatos inscritos para a realização do Exame. Mas tudo isso é parte de um projeto de desconstrução de um sistema público de avaliação educacional e de democratização do acesso ao ensino superior público.
De acordo com informações constantes no próprio site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), o Banco Nacional de Itens (BNI) do INEP “reúne um acervo de itens para a realização do Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa (Celpe-Bras), do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), do Exame Nacional de Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), do Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituição de Educação Superior Estrangeira (Revalida) e do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb)”.
A violação da integridade do Banco Nacional de Itens (BNI) do INEP ameaça a credibilidade de todos esses instrumentos de avaliação, e não podemos achar que o objetivo desse ataque é apenas animar a base social do governo Bolsonaro, pois em última instância o que se quer é desconstruir o INEP, os sistemas públicos de avaliação educacional, o ENEM, o SISU e a Lei de Cotas.
A extrema-direita que assumiu o comando do governo central pode ser em muitos aspectos incompetente, mas tem disposição permanente para o conflito. Fracassado o natimorto projeto denominado “Future-se”, forjou outras vias de ataque, de modo a manter a temperatura da guerra elevada e sua base social engajada.
Não por acaso o ENEM 2021, conforme noticiou a imprensa, está sendo o mais branco e elitista em mais de uma década. Não se trata de obra do acaso, mas sim de um projeto, ou da crise como projeto, para usar palavras de Darcy Ribeiro. O ENEM 2021, associado ao descaso do governo Bolsonaro no enfrentamento da pandemia e dos seus efeitos na educação, foi projetado para excluir candidatos pobres e negros. E se a Lei de Cotas figura como um obstáculo à elitização das universidades federais, o governo trata de minimizar esse obstáculo através do estrangulamento orçamentário das universidades, que impede a implementação de políticas de assistência estudantil capazes de assegurar a permanência dos estudantes cotistas, ou ainda através de uma política econômica que induz a juventude pobre, negra e periférica a desistir dos estudos em busca da sobrevivência de suas famílias.
Talvez esteja na hora de estudantes e profissionais da educação, que protagonizaram mobilizações significativas contra os cortes orçamentários em 2019, pintarem novamente as praças e avenidas de luta em defesa da educação pública, a partir do dia 20 de novembro – Dia da Consciência Negra. Defender a educação pública é também uma forma de combater o racismo estrutural, uma vez que a escola da população pobre, negra e periférica é a escola pública.