A médica Nise da Silveira dedicou sua vida às pessoas em sofrimento psíquico intenso. Essa mulher, que revolucionou o tratamento de transtornos psiquiátricos no Brasil ao substituir eletrochoque por arte, poderá ter o nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. A indicação feita pela deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), com relatoria da senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), foi aprovada, nesta quinta-feira (17), pela Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado, e segue para análise do Plenário.
De acordo com a lei, só podem constar no Livro nomes de brasileiros e brasileiras que tenham oferecido a vida à Pátria, para sua defesa e construção, com excepcional dedicação e heroísmo. Sem dúvida, é o caso da psiquiatra alagoana Nise da Silveira, pioneira do tratamento humanizado no país, apostando no valor terapêutico das artes e da interação com animais. Sobretudo, tratando os pacientes como seres humanos plenos de direitos.
Para o senador Humberto Costa (PT-PE), que também é psiquiatra, o reconhecimento do Senado é mais do que justo e espera que o plenário confirme a indicação em breve. “Nise da Silveira foi uma das pessoas mais importantes da política de saúde mental do nosso país, uma verdadeira revolucionária, pioneira de todo esse processo de reforma da atenção à saúde mental no Brasil. Sua visão de trabalhar com as pessoas de forma humana, respeitosa, de que a liberdade é fundamental para o tratamento e a recuperação das pessoas com transtornos mentais é, sem dúvida, inspiradora de tudo o que nós conseguimos fazer nos últimos anos no país”, afirmou o senador.
Humberto Costa destaca que a homenagem ocorre num momento oportuno de contraposição ao governo Bolsonaro, ao lembrar que Nise da Silveira foi uma das primeiras a falar do fim dos manicômios no Brasil. “Temos um governo que promoveu uma série de retrocessos na saúde mental, fazendo com que voltássemos a ter um modelo que tem o hospital como centro. Obviamente, não conseguiu amplamente, mas conseguiu de alguma forma fazer isso. Também adotou vários mecanismos e instrumentos de pseudotratamento que já haviam sido aposentados na reforma da atenção à saúde mental”, denunciou o senador.
Uma mulher à frente de seu tempo
Nascida em 1905, Nise da Silveira foi a primeira mulher a se formar na Faculdade de Medicina da Bahia, em 1926. Era a única mulher entre 157 estudantes. Em 1933, foi aprovada num concurso para psiquiatra do Hospital da Praia Vermelha, no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental, onde já começou a humanizar o tratamento dos pacientes.
Em 1936, Nise da Silveira foi presa por 18 meses, acusada de comunista, e ficou afastada do serviço público até 1944. Anistiada, funda em 1946 a Seção de Terapêutica Ocupacional no antigo Centro Psiquiátrico Nacional de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, que hoje leva seu nome.
Em uma área dominada por homens, Nise enfrentou os colegas e se opôs radicalmente ao uso de procedimentos comuns na primeira metade do século XX, como o confinamento em hospitais psiquiátricos, eletrochoque, insulinoterapia e lobotomia. A médica não permitiu que seus pacientes fossem submetidos a esse tipo de tratamento. Em vez disso, ofereceu a eles tintas, telas e pincéis. Esquizofrênicos ficavam livres para se expressar por meio da arte e terapeutas poderiam estabelecer conexões entre as imagens que emergem do inconsciente e a situação emocional que está sendo vivida pelo indivíduo. Os resultados foram inacreditáveis: além da melhora dos pacientes, eles criavam verdadeiras obras de arte.
Em 1952, criou o Museu de Imagens do Inconsciente, um centro de estudo e de pesquisa que reúne obras produzidas nos ateliês de atividades expressivas. Atualmente, o acervo possui cerca de 350 mil documentos entre telas, desenhos, pinturas e modelagens.
Nise criou ainda, em 1956, o centro de reabilitação Casa das Palmeiras, também no Rio de Janeiro. A psiquiatra tornou-se referência no país da aplicação das teorias de Carl Jung, com quem estudou durante um ano, na Suíça. Nise foi reconhecida internacionalmente por sua contribuição à psiquiatria, a exemplo de seu trabalho científico sobre esquizofrenia. Nise da Silveira morreu em 1999, aos 94 anos.
“Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas ajuizadas”, ensina Nise da Silveira.
Comenda Nise da Silveira
Em 2016, a psiquiatra já havia sido homenageada pelo Senado, que instituiu a Comenda Nise Magalhães da Silveira para premiar, anualmente, três personalidades que, como ela, tenham contribuído para a humanização do atendimento médico no Brasil.
A então senadora Regina Sousa (PT-PI) foi relatora da proposta no Plenário do Senado e lembrou uma passagem marcante da vida de Nise da Silveira, que acabou registrada em uma grande obra da nossa literatura. “Nise foi presa política durante o Estado Novo, acusada de envolvimento com o comunismo. No presídio Frei Caneca, ela dividiu cela com Olga Benário. Também conviveu com o grande escritor Graciliano Ramos, que a cita em seu livro Memórias do Cárcere. Ele diz, sobre Nise: ‘Lamentei ver a minha conterrânea fora do mundo, longe da profissão, do hospital, dos seus queridos loucos’”, destacou Regina Sousa.