As propostas e políticas governamentais dos últimos anos seguem na contramão do que preconizam especialistas em meio ambiente. Desmonte de órgãos de fiscalização, tentativa de mudanças na legislação que protege as florestas, incentivo ao garimpo ilegal e à invasão de terras indígenas, projeto de legalização da grilagem, entre várias outras ações condenadas dentro e fora do país.
Essa é uma das conclusões da primeira parte do evento realizado nesta segunda-feira (21) pela Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado, em parceria com o Fórum Euro-Brasileiro sobre Democracia e o Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas do Poder Judiciário, órgão vinculado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Foram discutidas a função ecológica da propriedade e a relação entre a legislação sobre desmatamento e as cadeias produtivas.
Entre outros convidados, o evento contou com a presença da ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Carmen Lúcia, do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Herman Benjamin, e do embaixador da Alemanha no Brasil, Heiko Thoms. Membros do Parlamento Europeu e integrantes de organizações não governamentais também participaram.
O Planalto foi representado pelo secretário de Soberania Nacional e Cidadania do Ministério das Relações Exteriores (MRE), Paulino Franco de Carvalho Neto, que repetiu o discurso governista de que o Brasil tem uma das melhores legislações sobre floresta nativa e que controla o desmatamento. Coube ao embaixador alemão Heiko Thoms explicar como anda a imagem do país no exterior. E o fez comparando os governos do PT ao atual:
“Entre 2005 e 2012 [governos Lula e Dilma], as emissões na área de mudanças relacionadas ao uso da terra diminuíram 86%. Importante destacar que nesse mesmo período a produção agrícola cresceu. O Código Florestal e outras leis foram criadas para reduzir o desmatamento e havia sistema de monitoramento, áreas indígenas demarcadas encontravam-se sobre salvaguarda efetiva. O mundo admirava o Brasil por essas conversas. Os compromissos que o Brasil assumiu no acordo de Paris receberam respeito internacional. Hoje, grande parte da comunidade internacional, incluindo a Alemanha e a Comunidade Europeia, espera que o Brasil volte a demonstrar o entendimento da gravidade do problema. O caminho nos parece bem claro: envolve implementar as leis brasileiras, que já existem, financiar as agências competentes, respeitar as instituições relevantes e repensar aquelas leis que atualmente estão em discussão, incluindo sobre mineração nas terras indígenas, que, ao nosso ver, teriam um impacto negativo não somente para a preservação da floresta amazônica, como também para a paz social na região e a reputação do país”, afirmou Thoms.
Presidente da CMA, o senador Jaques Wagner (PT-BA) concordou com o embaixador alemão e disse ao representante do governo brasileiro não enxergar necessidade de mudar leis, mas de cumpri-las. “Efetivamente a nossa legislação é muito avançada, mas eu tenho a tristeza de dizer que nesta Casa pairam já dois projetos que pretendem um processo de retrocesso, seja de regularização fundiária, seja de licenciamento ambiental. Nós já temos uma legislação que, se houver vontade política, tanto na área do licenciamento quanto na área da regularização, nós temos legislação para fazê-lo. Agora, às vezes não se abastece os órgãos para que eles possam cumpri-lo de forma eficiente, e depois se diz que a culpa é da lei, como se eu tivesse que precarizar a lei para que as coisas pudessem funcionar.”
Jaques Wagner também afirmou que é falsa a dicotomia entre preservação e desenvolvimento. Ele defendeu o conceito de sustentabilidade tripartite: econômica, social e ambiental. E, reafirmando sua convicção no diálogo, o senador ressaltou a criação de duas instâncias na CMA para debater saídas para o combate às mudanças climáticas.
“O primeiro é o Fórum Geração Ecológica, que reúne 45 representantes de diversos órgãos, e que vai preparar até junho um conjunto de propostas para o que eu chamo de guinada verde, que poderá ser utilizado pelo próximo governo, a partir de 2023. E o outro fórum é com a Cepal, um colóquio com parlamentares do mundo inteiro para fazer uma troca de experiência com legislações, com colegas de outros lugares do mundo sobre o meio ambiente.”
Função social
Um dos painéis da manhã foi dedicado ao debate da função social e ecológica da propriedade. A ministra Carmen Lúcia, do STF, comparou textos constitucionais. O de 1934, lembrou, trazia o conceito da dignidade humana, mas mais relacionado ao direito ao trabalho. Na Carta de 1988, a existência digna está vinculada a mais variáveis. E o meio ambiente saudável está entre esses fatores. Ela mencionou o artigo 225, pelo qual “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” Ao traduzir a função social e ecológica da propriedade, Carmen Lúcia afirmou que a propriedade cria obrigações.
“Nada valerá se for para ter indignidade. O desenvolvimento há de ser compatível com a garantia de defesa do meio ambiente. A prática econômica que ofenda o meio ambiente é inconstitucional. Ponto”, definiu.
Então, o que dizer de latifúndios improdutivos, fruto de desmatamento e de queimadas e cujas terras estão degradadas? O cumprimento da função social e ecológica, lembra Jaques Wagner, deveria determinar a recuperação dessas áreas para a produção, em vez da busca pela derrubada de mais florestas. Aqui, outro falso dilema, lembra o senador.
“A gente ouve dizer: ou desmata ou não gera empregos. Na verdade, uma boiada com mil cabeças ocupa apenas um vaqueiro. É muito mais lucrativo ter a floresta em pé”, completa.
Para o ministro Herman Benjamin, do STJ, “os fatos e os números estão aí. Não é fácil a tarefa de quem quer negar o avanço enorme do desmatamento em nosso país”. Ele e Carmen Lúcia concordam que a ação de milícias ambientais deteriora as condições do Brasil de dar conta de suas obrigações para com o meio ambiente. Para ambos, é preciso apostar na educação ambiental, outro instrumento desmontado pelo governo Bolsonaro.
Além desse setor, o governo arrochou órgãos de fiscalização. E tenta no Congresso mudar a lei com a desculpa de regulamentar a propriedade rural na Amazônia. O argumento não se sustenta, de acordo com Brenda Brito, pesquisadora do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Ela afirmou que existe arcabouço jurídico (Lei 11.952/2011) para a regularização de processos de décadas atrás envolvendo agricultores incentivados a ir para a Amazônia.
O problema, ressalta Brenda, são os grileiros. Em 2017, por exemplo, eles abocanharam mais poder com uma alteração na lei, o que permitiu ganharem o título de terras que desmataram entre 2006 – prazo da regra anterior – e 2011. Na opinião de Brenda, mudanças como essa são inconstitucionais, porque, “como lembrou a ministra Carmen Lúcia, isso viola um dos princípios da vedação do retrocesso ambiental”.
Ainda segundo a pesquisadora, “hoje sabemos o CPF de 69% dos proprietários e responsáveis pelo desmatamento na Amazônia.” Ou seja, só não pune se não quiser. Assim como ela, outros participantes do evento criticam projetos governistas em discussão no Congresso por abrirem novas brechas, em vez de cumprir, pelas leis atuais, a regularização das terras.