“STF investiga Bolsonaro por conduta criminosa na pandemia de Covid-19”; “STF investiga Bolsonaro por prevaricação no escândalo Covaxin”; “TCU apura fraudes em hospitais federais do Rio de Janeiro durante a pandemia”; “Procuradoria do Distrito Federal apura irregularidades na Saúde”. Sabe o que essas quatro ações de combate à corrupção, iniciadas de dezembro para cá e ainda em curso, têm em comum? A resposta é uma só: a CPI da Covid.
Criada exatamente um ano atrás, em 13 de abril de 2021, a Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou os desmandos do governo federal durante a pandemia foi uma das que mais deu resultados positivos na história do país.
Muito além do indiciamento de duas empresas e 78 pessoas, como o presidente Bolsonaro, ministros, parlamentares (inclusive os filhos do presidente) e secretários de alto escalão – mais empresários, médicos, assessores e atravessadores –, o resultado da CPI já foi sendo notado ao longo do próprio trabalho: foi a pressão gerada pela investigação e pelos depoimentos que acelerou a vacinação em todo o país, destravou a compra de vacinas, impediu o desvio de bilhões de reais dos cofres públicos, expôs o negacionismo oficial, descobriu o gabinete paralelo da Saúde, identificou prevaricação do presidente, causou a demissão de ministros e secretários, desvendou esquemas de propinas e escancarou a experiência mortal com seres humanos praticada por empresários amigos do presidente, com o depoimento de vítimas que levaram às lágrimas os senadores presentes e quem os acompanhava na TV, com transmissão ao vivo.
A lista é grande, como confirma o senador Humberto Costa (PT-PE). “A CPI foi um marco na história do Brasil. Um primoroso trabalho legislativo que freou a matança de brasileiros pelo governo Bolsonaro, que foi absolutamente criminoso na gestão da Covid-19, expondo deliberadamente milhares de pessoas ao vírus”, resumiu Humberto, membro titular da comissão, que teve ainda como suplente o senador Rogério Carvalho (PT-SE) e a participação do senador Jean Paul Prates (PT-RN).
“Foi graças a esse trabalho que o Poder Executivo se mexeu, saiu do imobilismo para comprar vacinas, pagar auxílio-emergencial [que havia sido suspenso e só foi retomado porque a comissão pressionou]. Não fosse a ação decisiva da CPI, nossa tragédia teria sido muito maior, não só do ponto de vista de vidas humanas, como também do roubo escancarado do dinheiro público”, relatou, referindo-se aos escândalos Covaxin e Davati, desbaratados no curso do inquérito, que impediram propinas de pelo menos R$ 1,6 bilhão, com pagamentos a empresas de fachada e acertos de comissões.
“Completado um ano de sua criação, nós podemos ver o legado deixado pela comissão. E esperamos que as autoridades às quais a sequência das investigações foi delegada cumpram o seu papel de levar à justiça os criminosos desse enredo sórdido”, afirmou Humberto Costa, na expectativa de ver avançar a apuração dos crimes apontados pela CPI aos órgãos responsáveis, em especial a Procuradoria-geral da República.
O contexto
Vale lembrar em que condições a CPI da Covid foi criada. O Brasil vivia um tsunami de pesadelos na área da saúde que a maior parte do mundo já havia superado: a vacinação contra a Covid-19 engatinhava, o negacionismo patrocinado pelo governo trabalhava contra o isolamento social e o uso de máscaras, a negligência crônica do Executivo havia provocado mortes por falta de oxigênio em Manaus e dificultava a compra de vacinas, cuja eficácia era contestada em campanha diuturna pelo próprio presidente da República, que se tornara garoto-propaganda de remédios ineficazes, ao lado de várias outras autoridades.
Enquanto isso, as novas variantes do novo coronavírus infectavam e matavam cada vez mais. Naquele momento, o Brasil já figurava entre os países com mais mortes pela doença, proporcionalmente à população, em todo o mundo, situação que se mantêm até hoje: perdemos quase 5 vezes mais pessoas do que a média mundial.
A pandemia de Covid-19 já passava de um ano e a condução desastrosa de Bolsonaro e equipe já havia deixado clara para o mais leigo do cidadão a responsabilidade direta do governo na grande maioria das mortes pela doença.
A CPI começou a trabalhar de fato em 27 de abril, quando deu início a quase 6 meses de investigação, cerca de 400 horas de sessões, com 10 terabytes de informações e dados reunidos. Ao final, muito ao contrário do que disseram apoiadores fanáticos do atual governo, o volume de resultados positivos para o país é proporcional ao das quase 1.300 páginas do relatório final aprovado em 26 de outubro.
Dias depois, a cúpula da CPI criou a Frente Parlamentar Observatório da Pandemia para acompanhar os desdobramentos da CPI nos órgãos de investigação. Em fevereiro, por exemplo, os senadores da Frente denunciaram a morosidade do procurador-geral da República, Augusto Aras, em executar o seu trabalho e dar continuidade às investigações dos crimes apontados pela comissão.
Crime contra a humanidade
Os consequências da CPI estão longe de se resumir àquelas quatro ações citadas no início do texto. O advogado e assessor jurídico do PT no Senado, Marcos Rogério, que acompanhou de perto toda a investigação e ainda acompanha o desenrolar das apurações, alerta para o fato de os processos estarem todos em curso, principalmente aqueles envolvendo o principal indiciado.
“Jair Bolsonaro usa o cargo de presidente como escudo para se proteger, mas o mandato vai terminar e os processos a que responde vão correr com mais velocidade. Está tudo tramitando, nada foi arquivado e ele vai pagar, agora ou lá na frente”, afirmou.
Marcos Rogério lembrou ainda da frente internacional da investigação, uma vez que o relatório final foi remetido como denúncia ao Tribunal Penal Internacional (TPI). “Além das investigações no MPF e nos Ministérios Públicos estaduais, Bolsonaro também responde junto ao Tribunal Penal Internacional, já que as denúncias de crime contra a humanidade foram enviadas para lá. A justiça vai chegar”, disse.
No caso do TPI, o processo é ainda mais lento, mas há exemplos recentes de condenações, como foi o caso do ex-chefe militar sérvio Ratko Mladic, o “açougueiro da Bósnia”, condenado à prisão perpétua em 2021, 26 anos após a denúncia, e do ex-ditador do Chile Augusto Pinochet, cuja prisão em 1998 foi um marco na jurisprudência internacional de crimes contra a humanidade.