Caso o presidente eleito cumpra as suas promessas antidemocráticas, o jornalista Elio Gaspari já pode preparar o quinto volume da sua série sobre a ditadura brasileira: A Ditadura Desavergonhada.
Com efeito, o que mais surpreende em Bolsonaro e no neofascismo que tomou conta do Brasil e derrotou a democracia é a sua total falta de vergonha.
Ele e seus seguidores falam as maiores barbaridades de forma aberta, sem pejo e sem hesitações. Pior: falam com empáfia e estridência. Se orgulham de sua própria bestialidade, da sua truculência tosca, da sua estupidez patente. Se vangloriam da sua total falta de decência, de humanidade.
Chafurdam contentes na lama espessa do seu ódio aos diferentes, aos pobres, aos negros, às mulheres que dizem não, aos indígenas “indolentes”, aos “vermelhos”, que pretendem banir, encarcerar ou exterminar. Se comprazem no culto abjeto à tortura, à ditadura, às armas e à violência.
Nenhum ditador se comportou da forma como se comporta esse presidente tupiniquim e candidato a ditador.
Nem mesmo Pinochet. Até ele procurava manter um pouco as aparências. Disfarçar a truculência, manter um verniz de civilidade. Perguntado sobre o caráter do regime chileno, declarou: “Esto no ha sido nunca una dictadura. Ha sido una dictablanda” (Isso nunca foi uma ditadura. Foi uma ditabranda). Sim, isso mesmo. A expressão “ditabranda” foi popularizada por Pinochet, a Folha apenas a copiou.
O mesmo aconteceu na ditadura brasileira de 1964. Nossos generais, mesmo os da linha-dura, procuravam disfarçar, em público. As pessoas não eram sequestradas, “desapareciam”. Não eram torturadas, eram “submetidas a interrogatórios”. Não eram assassinadas, se “suicidavam”, como Herzog.
Ninguém defendia tortura ou ditadura, como faz abertamente Bolsonaro. Ao contrário, a simples menção a tais palavras provocava a ira dos generais.
Na Alemanha nazista, os campos de extermínio eram apresentados como “campos de trabalho”. Goebbels fez propaganda mostrando sorridentes e fornidos judeus trabalhando alegremente nesses campos idílicos.
Alguns dizem que as barbaridades reiteradas são “da boca para fora”. Porém, o político é um ser “da boca para fora”. É um ser que, basicamente, fala, discursa, argumenta e debate (nem todos). A palavra é a arma do político democrático. Portanto, é necessário ter muito cuidado com ela. É a palavra que define a identidade de um político e é ela que incita e congrega apoiadores. Palavra autoritária e violenta gera seguidores autoritários e violentos.
Mas, o que causa essa obscenidade política? Essa sordidez despudorada?
Além de preconceitos atávicos, a certeza da impunidade.
Bolsonaro sabe que as instituições dificilmente o coibirão. Provavelmente, não farão nada. Tal como aconteceu na Alemanha. Ele sabe da atual falência institucional e democrática do Brasil. Afinal, ele emergiu desse processo de destruição progressiva da democracia brasileira, iniciado pelo golpismo que se arquitetou ao final de 2014.
Se quisessem coibi-lo, as forças políticas hegemônicas que tomaram de assalto o poder em 2016 o teriam feito bem antes, pois o perigo era evidente. Eu mesmo escrevi artigo sobre tal perigo ainda em fevereiro de 2017. Não o fizeram. Não o quiseram fazer. O insuflaram e depois lavaram as mãos.
PT e aliados históricos ficaram sozinhos na trincheira antifascista. As poucas outras lideranças políticas que deram apoio à causa democrática o fizeram na última hora e de forma tíbia, sem engajamento efetivo. O apoio social, embora expressivo ao final, foi insuficiente para deter o desastre anunciado.
Nessas condições, se tiver qualquer problema para implantar o projeto ultraneoliberal que as grandes forças internas e externas o encarregaram de implantar, Bolsonaro convocará as suas SA, vestidas de amarelo-CBF, para amedrontar as instituições deslegitimadas, seja o Congresso, o STF ou qualquer outra.
Ele sabe também que poderá contar com a atual tutela das Forças Armadas sobre o poder civil, algo que ficou evidente no governo Temer. Em último caso, poderá tentar o “golpe dentro do golpe”, como já prometeu, e inviabilizar de vez o funcionamento regular das instituições democráticas.
Mas o despudor autoritário não é, evidentemente, a consequência maior da eleição do candidato a ditador.
Há ameaças concretas e iminentes.
1) A crise política será consideravelmente agravada.
O Brasil atual precisava desesperadamente de alguém apaziguador e conciliador, capaz de negociar racionalmente com todos os setores da sociedade. Bolsonaro é o exato oposto de alguém com esse perfil. Ele tornará o cenário político brasileiro muito mais tenso e conturbado.
A tendência é que ele responda aos desafios da governabilidade com ameaças e repressão.
Em vez de diálogo, iniciará movimentos de bonapartista autoritário. Em vez de procurar fortalecer as combalidas instituições democráticas, procurará fragilizá-las ainda mais e instrumentalizá-las para seus objetivos. Não será, definitivamente, um chefe de Estado republicano.
Com isso, a democracia brasileira poderá entrar num estágio terminal, o sistema político perderia a sua capacidade de arbitrar conflitos e as tensões sairiam de controle.
Por conseguinte, o cenário mais provável, caso Bolsonaro faça o que prometeu, é de uma grande Venezuela, com o sério agravante de que aqui o chefe de Estado não hesitaria em promover repressão massiva e violenta contra opositores.
2) A crise econômica se aprofundará e se tornará crônica.
A agenda econômica do “Posto Ipiranga” de Bolsonaro é a da implantação de um ultraneoliberalismo selvagem.
Embora, num primeiro momento, o “mercado” possa dar soluços otimistas, a tendência é que economia continue na mesmice medíocre do governo Temer.
Sem distribuição de renda, sem crédito barato e sem investimentos estatais, é muito improvável que a economia brasileira saia do buraco. Ao contrário, a tendência desse ajuste ad eternum e das políticas pró-cíclicas é a da fragilização dos vetores que poderiam promover o desenvolvimento do Brasil.
Poderemos ter, é claro, “voos de galinha”. Mas jamais teremos, com esse modelo destruidor, um processo sustentado e sustentável de desenvolvimento.
3) O quadro social se deteriorará muito.
A combinação de ultraneoliberalismo selvagem com um Estado repressor acarretaria séria deterioração de um quadro social já muito difícil.
Bolsonaro é um darwinista social radical, um inimigo declarado dos direitos trabalhistas, das políticas sociais e do Estado de Bem Estar. Para ele, é necessário se acabar com o que ele denomina de “coitadismo”, ou seja, com as políticas que beneficiam pobres, negros, etc.
Dado o garrote da Emenda Constitucional Nº 95, a sua intenção de aumentar gastos militares e com repressão terá de ser compensada com cortes de investimentos em previdência, educação, saúde, etc. Por isso, fala em ensino à distância, em cobrança nas universidades públicas, etc.
Seu “Posto Ipiranga” já prometeu ao mercado uma “reforma previdenciária radical”, com a implantação do fracassado modelo chileno, que dava aos velhinhos aposentadorias de cerca de 40% do salário mínimo de lá.
A tendência inexorável, portanto, é do incremento e cronificação do desemprego e do subemprego, forte aumento da desigualdade, a volta da fome e a expansão da pobreza.
Também teremos contrações na oferta de serviços públicos gratuitos e a privatização de funções essenciais do Estado.
4) O Brasil será posto à venda.
Evidentemente, o governo do golpe já colocou o Brasil à venda. Mas o governo Bolsonaro deverá acelerar e aprofundar a venda dos recursos estratégicos do Brasil.
Além do pré-sal, os recursos estratégicos da Amazônia, por exemplo, deverão entrar na dança do “mercado”.
Ademais, ele intentará privatizar bancos e todas as empresas estatais que ainda restam, inclusive a Petrobras, ou parte significativa dela. Afinal, ele foi colocado lá exatamente para isso.
Suas declarações contra a agenda ambiental e contra indígenas e quilombolas visam facilitar essa venda e liberar os “investimentos”, inclusive estrangeiros, que espera atrair com a venda do Brasil.
5) O Brasil se tornará uma nulidade geopolítica.
Do ponto de vista geoestratégico, o prometido alinhamento automático de Bolsonaro a Trump, será de grande interesse para os EUA na região. Como se sabe, a prioridade estratégica atual dos EUA é o “grande jogo de poder contra China e Rússia”, entre outros. Bolsonaro, que já prometeu doar Alcântara aos americanos e privatizar tudo, será a ponta de lança dos interesses dos EUA na região, intervindo na Venezuela e se contrapondo aos objetivos russos e chineses na América do Sul.
Com isso, o Brasil, que abandonou a política externa ativa e altiva que tanto nos elevou e se tornou um anão diplomático sob Temer, rumará para uma gloriosa nulidade geopolítica.
Além disso, a sua promessa de fechar a Embaixada da Palestina e seu alinhamento a Israel traria inúmeros prejuízos ao Brasil, em sua relação com o Oriente Médio. Seu descarado racismo limitaria qualquer política nossa, em relação à África.
Seu claro alinhamento subordinado aos EUA nos enfraquecerá perante os BRICS e seu descompromisso com a integração regional comprometerá a liderança brasileira no subcontinente.
A abjeta continência à bandeira norte-americana não foi um ato gratuito.
Caso ele seja “bem-sucedido” nessa esfera, a tendência é que o Brasil se transforme num grande Porto Rico, um estado associado dos EUA
6) A imagem do Brasil no exterior será a pior possível.
Sob Temer, a imagem do Brasil no exterior se deteriorou muito. Mas nada se compara ao dano que a eleição do candidato a ditador acarretará à imagem do país.
Todo o mundo civilizado, inclusive a direita civilizada, vê Bolsonaro com um imenso desdém político e nojo moral. Lá fora, se chocam com as barbaridades que diz de forma recorrente. Outros riem de sua figura grotesca. Ninguém o quererá por perto. Ninguém o respeitará.
Não contribuirá para amenizar tal imagem profundamente negativa o seguido desrespeito do Estado brasileiro às decisões da ONU sobre a prisão política de Lula e as declarações desastrosas do próprio candidato a ditador sobre o Brasil sair das Nações Unidas e do Acordo de Paris.
O Brasil, que já teve Lula, uma respeitadíssima liderança mundial, agora tem Bolsonaro, um fascistoide primitivo. Isso diz tudo sobre a situação do país.
Não obstante essas sérias ameaças, a derrota da democracia nesta eleição não é definitiva. Nunca é. Democracia é processo. Ao final das eleições, parte significativa da sociedade brasileira reagiu ante o horror que se avizinhava.
É imperativo não perder esse impulso político e que as forças democráticas se unam de verdade contra a séria ameaça que chega ao poder. Mais do que nunca, a oposição democrática precisa “coesionar” e se fortalecer. Nunca é tarde para se somar a quem está do lado certo da História.
As forças democráticas foram derrotadas desta vez, mas, parafraseando Darcy Ribeiro, detestaria estar ao lado das forças obscurantistas que ameaçam implantar uma ditadura desavergonhada.
Comemoraremos os duzentos anos da independência do Brasil com um entreguista fascistoide no poder e, provavelmente, com Lula ainda como preso político. Essa é a suprema vergonha.
Porém, os brasileiros que têm vergonha na cara não fugirão, não aceitarão ser banidos. Não aceitarão injustiças e arbitrariedades. O PT e todos aqueles que têm compromisso real com a democracia e com o povo não vão desaparecer. Vão lutar. Vão aparecer cada vez mais.
Amanhã será outro dia.