A década inclusiva – Por Marcelo Côrtes Neri

Em artigo no Valor, Neri diz que a renda de grupos tradicionalmente excluídos foi a que mais prosperou na última década.

Acompanhar indicadores sociais brasileiros baseados em renda até o começo da década passada era um exercício frustrante. A alta desigualdade brasileira se comportava desde 1970 como se fosse uma constante da natureza, enquanto a renda média flutuava ao sabor de choques externos e de políticas internas em torno da tendência nula assumida nas chamadas décadas perdidas. Agora, finda, no sentido gregoriano da palavra, a primeira década do século pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – Pnad 2011 recém-lançada, o que podemos dizer de medidas sociais baseadas em renda domiciliar per capita nos anos 00?

A década passada começou como as duas anteriores, sem crescimento e com instabilidade de renda. O crescimento da renda, em particular do emprego formal, volta com força a partir do fim da recessão de 2003 até 2011 (e depois). Neste ínterim, a taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) per capita acumulada foi de 27,7%, sendo superada em 13 pontos percentuais pela renda da Pnad, a perspectiva aqui seguida.

A partir de 2001 a desigualdade, medida pelo índice de Gini, cai entre todas as sucessivas Pnads da década de forma que chegamos em 2011 ao nível mais baixo da série histórica que começa no Censo de 1960. Segundo a Unesco, 2/3 dos países do mundo vivenciaram aumento de desigualdade no período recente. A exceção são os países da América Latina, o continente com maior desigualdade, onde a mesma apresenta tendência de queda generalizada no período entre 2001 e 2007, segundo vários estudos.

Como foi o crescimento da renda per capita mediana entre pessoas de diferentes segmentos da sociedade brasileira?

Essa combinação tupiniquim de crescimento com desigualdade gera impactos crescentes e cumulativos sobre os níveis de pobreza e de bem-estar social. A mediana de renda que capta melhor que a média as condições de vida da população cresceu 63,61%. Valor quase duas vezes mais rápido que os 32,2% da média de renda na década passada. Esta distância entre média e mediana é uma medida da magnitude da redução de desigualdade observada.

Se a média esconde tanto quanto revela, a desigualdade de renda pessoal medida pelas medidas tradicionais acaba fornecendo uma visão impessoal, se abstraindo da face humana que é possível de ser enxergada pelas lentes das pesquisas domiciliares. Mais diretamente, como foi o crescimento da renda per capita mediana entre pessoas de diferentes segmentos da sociedade brasileira como grupos de educação, idade, raça, região e etc?

No caso das pessoas que vivem em famílias chefiadas por analfabetos, a renda sobe 88,6%, vis a vis um decréscimo de 11,1% daquelas cujas pessoas de referência possuem 12 anos ou mais de estudo completos.

A renda do Nordeste sobe 72,8%, contra 45,8% do Sudeste. Similarmente, a renda cresceu mais nas pobres áreas rurais, 85,5%, contra 40,5% das metrópoles e 57,5% das demais cidades.

O conceito de renda domiciliar per capita elimina, por construção, toda a desigualdade existente entre diferentes membros de uma mesma família. Apesar desse efeito suavizador por características individuais no âmbito domiciliar per capita, algumas delas apresentam mudanças significativas. Senão vejamos.

A renda daqueles que se identificam como pretos e pardos sobe 66,3% e 85,5% respectivamente, contra 47,6% dos brancos. A renda das crianças de 0 a 4 anos sobe 61% contra 47,6% das pessoas entre 55 a 59 anos. Incidentalmente estas eram, no começo da década passada, os extremos da renda por faixa etária. Ações como o Bolsa Família e o Brasil Sem Miséria ajudam a entender este resultado.

Os setores de atividade mais dinâmicos, ainda em termos de renda mediana per capita de todas as fontes acima da média, incluem aqueles que abrigam a parcela mais pobre do país, como o de empregados agrícolas, de serviços domésticos e não remunerados cujas rendas sobem na década, 86%, 62,4% e 60,3%, respectivamente.

De maneira geral, a renda de grupos tradicionalmente excluídos, que tinham ficado para trás, foi a que mais prosperou no período. Em particular, analfabetos, negros, crianças, nordestinos, moradores do campo foi onde a renda cresceu mais no século XXI.

Dados sobre o progresso social do Brasil velho a partir da Pnad lançada sexta-feira, serão divulgados hoje, às 11 horas, em transmissão ao vivo pelo Ipea no site www.ipea.gov.br. O estudo, feito pela equipe no Ipea com participação especial de Pedro H. Ferreira, procura responder a uma série de perguntas sobre causas e consequências da distribuição de renda, do padrão de desenvolvimento inclusivo assumido nos anos 00, a saber: qual é o comportamento da pobreza vis a vis os compromissos fixados nos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio da ONU? Quais são os papéis desempenhados pelo crescimento de renda e pela redução da desigualdade de renda per capita na redução de pobreza observada? Qual a importância das diferentes fontes de renda domiciliares no processo de desconcentração de renda com crescimento observado? Em particular, qual o impacto de diferentes políticas de renda como a expansão de transferências de renda a começar pelo Bolsa Família e pelos reajustes do salário mínimo e seus impactos sobre os benefícios previdenciários e assistenciais? Estas perguntas são respondidas a partir da série de Pnads até 2011, complementados por dados inéditos até agosto de 2012.

*Marcelo Côrtes Neri é presidente do Ipea e professor da EPGE/FGV. Autor de “A Nova Classe Média” (Editora Saraiva), “Microcrédito: o Mistério Nordestino e o Grameen Brasileiro” (FGV) e “Cobertura Previdenciária: Diagnósticos e Propostas” (MPS). Escreve mensalmente às terças-feiras. [email protected]

 

*Artigo publicado no jornal Valor Econômico no 25/09/2012

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