– As relações bilaterais entre Brasil e Argentina são uma espécie de eixo estruturante do Mercosul e da integração regional.
– Com efeito, foi a partir do descongelamento dessas relações, ocorrido no contexto da redemocratização de ambos os países, que o Mercosul começou a tomar forma. Os famosos acordos Alfonsín/Sarney, firmados na década de 1980, pavimentaram a celebração do Tratado de Assunção, que criou o Mercosul, em 1991.
– Com o Mercosul, as transações comerciais entre esses dois países explodiram, especialmente nos governos do PT. Em 2002, exportamos apenas US$ 2, 3 bilhões para a Argentina. Já em 2011, chegamos a exportar US$ 22, 7 bilhões. Naquele ano, só exportamos mais para China e EUA.
– Contudo, o mais importante aqui destacar é que as exportações para a Argentina, para o Mercosul e para a América do Sul são exportações de valor agregado alto. Para esses mercados, exportamos essencialmente produtos manufaturados. No caso específico da Argentina e do Mercosul, mais de 90% de nossas exportações são compostas por bens industriais. Já no caso da União Europeia, dos EUA e da China, essa participação dos bens manufaturados em nossas exportações é de 36%, 50% e 5%, respectivamente.
– Exportamos muitos automóveis, motores, partes de automóveis, caminhões, chassis, tratores, colheitadeiras, máquinas, celulares etc. para a Argentina e para o Mercosul.
– Ademais, o Brasil é quarto maior investidor na Argentina e o país que mais envia turistas para lá.
– Além dessa importância comercial e econômica, essas relações também são muito relevantes do ponto de vista social e político, pois é do interesse objetivo do Brasil ter um entorno estável, pacífico e próspero.
– Da perspectiva diplomática e geopolítica, essas relações bilaterais entre os dois principais países da América do Sul e a integração regional como um todo aumentam o protagonismo internacional do Brasil e robustecem nosso poder de barganha em todos os foros mundiais relevantes. O Brasil é grande, mas se torna ainda maior quando fala e age em conjunto com seus vizinhos.
– Por conseguinte, as relações bilaterais com a Argentina, o Mercosul e a integração regional de um modo geral são estratégicos para o Brasil, especialmente para nossa indústria de transformação, que não tem muita competitividade em outros mercados.
– Entretanto, desde o golpe de 2016 e, principalmente, após o governo Bolsonaro, o Brasil descuidou dessas relações bilaterais e da integração regional.
– Com efeito, no que tange ao Mercosul, o Brasil passou a apostar no chamado “regionalismo aberto”, isto é, na conversão do bloco em mera área de livre comércio, com o abandono da sua união aduaneira.
– Ora, é justamente a união aduaneira que, embora incompleta, permite que a indústria do Brasil tenha competitividade nos mercados dos outros membros do Mercosul. A maioria de nossos produtos industriais entra nesses mercados com tarifa zero, ou próxima de zero, enquanto bens industriais das potências extrabloco o fazem pagando uma tarifa bem mais elevada. Com o fim da união aduaneira, os produtos brasileiros seriam igualados aos de outros países, como China, EUA, Alemanha, Coréia etc.
– No que refere à integração regional como um todo, o governo Bolsonaro, por motivos puramente ideológicos, resolveu abandonar a Unasul, a Celac e a própria Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), vital para a proteção daquele bioma estratégico para o mundo.
– Também pelos mesmos torpes motivos, o governo Bolsonaro passou a hostilizar o governo progressista da Argentina e, mais recentemente, os governos do Chile e da Colômbia.
– Em relação à Venezuela, o governo Bolsonaro, subordinando-se à política externa norte-americana, resolveu apostar suas fichas num governo imaginário (o de Juan Guaidó), abandonando totalmente suas relações com o único governo real daquele país, o de Nicolás Maduro. Com isso, o governo Bolsonaro não apenas prejudicou os interesses da população brasileira, especialmente a de Roraima e do Amazonas, estados que dependem bastante da relação Brasil/Venezuela, como transformou o nosso país e a América do Sul num palco de disputa geopolítica entre os EUA, de um lado, e China e Rússia, de outro.
– Pois bem, esse desinvestimento nas relações bilaterais com a Argentina, no Mercosul e na integração regional, além de nos ter colocado em contraposição às nossas próprias tradições diplomáticas e aos princípios constitucionais relativos à política externa, vem produzindo efeitos concretos danosos.
– O comércio bilateral com a Argentina, por exemplo, está sendo afetado. Em 2021, o China ultrapassou o Brasil no mercado argentino, embora nosso país continue a ser, em sentido contrário, o principal destino das exportações argentinas, já que a China importa relativamente pouco daquele país.
– A China, evidentemente, tem uma indústria mais competitiva que a brasileira. Mas isso não explica tudo. A China investe pesadamente em suas relações comerciais e econômicas, independentemente dos governos de ocasião. Não se auto prejudica por motivos político-ideológicos. Ademais, a China estimula seus exportadores com apoio financeiro.
– No caso da Argentina, tal apoio é decisivo, pois esse país tem carência de dólares e está submetido a uma grande vulnerabilidade externa, que se manifesta intensamente em épocas de crise. A proposta de criação de uma moeda que facilite as trocas comerciais e financeiras entre Brasil e Argentina, esquivando-se da volatilidade cambial do peso argentino, insere-se nesse contexto estratégico de proteger o interesse do País naquele mercado e, potencialmente, nos mercados de toda a região.
– Se o Brasil não fizer nada, como não o fez no governo Bolsonaro, a tendência é que a China e outros países acabem por substituir nossa presença não somente no mercado argentino, mas também nos mercados de outros vizinhos. O Uruguai, por exemplo, liderado atualmente por um governo conservador e neoliberal, ensaia celebrar um acordo de livre comércio com a China, o que poderia implodir o Mercosul e sua união aduaneira.
– O terceiro governo Lula, está, por assim dizer, “correndo atrás do prejuízo” deixado pelo governo Bolsonaro. Graves prejuízos econômicos, comerciais, geopolíticos e diplomáticos.
– Além de recompor as relações com a Argentina e outros vizinhos, o novo governo Lula vai voltar a se inserir na Unasul, na Celac e na OTCA, numa estratégia ampla que visa resgatar nosso protagonismo na região, ampliar nossa presença nesses mercados e promover o desenvolvimento sustentável de todos e a paz.
– Observe-se que a relativa fragmentação das cadeias globais de valor cria oportunidade para a geração de cadeias regionais de produção destinadas a agregar valor às economias nacionais, especialmente no contexto da transição ecológica. Dessa forma, seria desejável se investir em cadeias regionais de produção, amparadas em políticas estatais de desenvolvimento sustentável. Ambientalmente sustentável e socialmente sustentável. Isso seria impossível, porém, no quadro do “regionalismo aberto” desintegrador proposto pelos neoliberais.
– Temos, por conseguinte, a oportunidade histórica de refundar a integração regional em bases mais sólidas e estáveis. Podemos transformar essa integração em vetor relevante de nosso próprio desenvolvimento. Para isso, porém, será necessário voltar a investir. Investir economicamente e politicamente. Investir, por exemplo, na infraestrutura e na integração física da América do Sul. A Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) e o Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem) teriam de ser reativados e fortalecidos. No mesmo diapasão, seria preciso ativar as complementariedades econômicas e científico-tecnológicas da região.
– O fundamental, contudo, é mudar a mentalidade arcaica que vê investimentos, especialmente investimentos na integração, como “gastos” que prejudicam o país e beneficiam “ditaduras”. Essa mentalidade retrógrada beneficia apenas a China e outros países que têm economias mais competitivas. Não beneficia o Brasil. Se a Alemanha tivesse sido presa dessa mentalidade, a União Europeia não seria o que é hoje.
– O Brasil é um país da América do Sul e da América Latina. Estamos irrevogavelmente inseridos nesse contexto geográfico e histórico. Não somos europeus, não somos norte-americanos e não somos asiáticos. Nosso destino está, portanto, indissoluvelmente ligado aos destinos de nossos vizinhos.
– Cuidando de nossas relações com eles, cuidamos bem de nós.