Na política não existe vácuo. Pois bem. Se o sistema de Justiça vem sendo usado politicamente para perseguir adversários, é coerente pontuar que a lacuna deixada pelo declínio da operação Lava Jato também será ocupada. Ou o mais provável é que já esteja sendo.
A luta intestina do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, com a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, por poder e controle, foi efetivamente deflagrada após a saída de Sérgio Moro do governo de Jair Bolsonaro, sendo, claramente, um espelho da disputa entre o presidente e o ex-juiz, os dois principais atores que, no campo da direita, polarizaram a opinião pública nos últimos anos sob o slogan do combate à corrupção, da luta de “bons contra os maus” e da criminalização da política.
Depois das revelações do portal The Intercept Brasil e seus parceiros, a partir de junho de 2019, as ações recentes de Augusto Aras contra a força-tarefa da Lava Jato foram o que de mais impactante concorreu para a fragilização da operação.
O procurador usou seu poder para fazer a exposição das vísceras de todas as ilegalidades cometidas pelos seus colegas de Curitiba, o que, sem sombra de dúvida, também atinge o juiz que conduzia a operação. A motivação de Aras, contudo, está distante da busca de um modelo disruptivo, ou de reencontro com os princípios e práticas do devido processo legal constitucional. Ele tem lado e seu lado está no poder central do país.
Quando se fala em “fim” é preciso estabelecer uma diferenciação entre o que é a Lava Jato e o que configura o lavajatismo, ou entre a operação de investigação e o arquétipo de uso do sistema de justiça como arma política.
A operação, formalmente falando, pode ser encerrada com um ato administrativo do chefe da Procuradoria-geral da República. Augusto Aras renovou o prazo da Lava Jato até janeiro de 2021.
Não obstante, o formato do processamento pelo sistema jurídico de escândalo político midiático, real ou produzido, sobre os mesmos escolhidos não se exaure, qualquer que seja o destino dos inquéritos e processos de Curitiba, e dos quatro Estados onde a Lava Jato possui atuação.
No movimento de vaivém que encontra as contradições internas do sistema de justiça, a nulidade de sentenças de Sérgio Moro no Supremo Tribunal Federal tiveram início em agosto de 2019 com o caso de Aldemir Bendine, ex-presidente da Petrobras, como reconhecimento de que réus delatores não podem falar no mesmo tempo processual de réus delatados.
A saída de Moro do Ministério da Justiça foi a virada de chave para o aumento dos questionamentos de métodos feitos dentro do campo bolsonarista.
Recentemente, a saída de Deltan Dallagnol da coordenação da força-tarefa em Curitiba e o reconhecimento, pelo CNMP, de que ele cometeu desvio funcional, foram fatos que ocorreram poucos dias depois da Segunda Turma do STF anular a delação de Antônio Palocci na ação penal contra o ex-presidente Lula, ao fundamento de que colocara em xeque o ato judicial.
Precisamente no dia 2 de setembro, procuradores da Lava Jato em São Paulo pediram demissão coletiva por discordarem da nova coordenadora do grupo, Viviane de Oliveira Martinez, que havia sido nomeada por Aras. Tudo isso combinado acarretou a fala correta de que a Lava Jato acabou.
Na outra ponta, a ação de busca e apreensão ordenada pelo juiz federal Marcelo Bretas no dia 9 de setembro, no Rio de Janeiro, contra escritórios e residências de advogados, incluídos os da defesa do ex-presidente Lula, mostra que o sistema está disposto a resistir, mesmo que mude de mãos, desloque o espaço geográfico central e possa até, eventualmente, trocar de nome.
Tratou-se de uma ação espetaculosa, feita no mesmo dia em que Bretas aceitou a denúncia de 504 páginas, com base na delação do ex-presidente da Fecomércio-RJ, Orlando Diniz, preso em fevereiro de 2018, conhecida há mais de um ano.
Traduzindo em termos práticos, pode ser que Curitiba deixe de ser o epicentro e os holofotes do processo penal do espetáculo se voltem para outros estados.
Por derradeiro, a denúncia divulgada na segunda-feira (14) pelo Ministério Público de Curitiba sobre as doações ao Instituto Lula, segue a lista de investigações, após o caso do Triplex e do sítio de Atibaia, e o modelo da cartilha.
Sem qualquer materialidade, prossegue na fundamentação habitual de que doações de origem lícitas e devidamente declaradas foram dissimuladas. Sem provas, mas convictos de que é preciso seguir no propósito de acusar e condenar seus inimigos.
O fato é que o modelo persecutório tornado famoso pela Lava Jato continua a existir e por dentro do estabilishment, o que obriga a uma resposta negativa à pergunta feita no título. A Lava Jato não morreu. A Lava Jato segue blindada no noticiário, com suas ações espetaculosas ganhando status de combate implacável à corrupção.
A Lava Jato pode ter “acabado” no formato que existia antes, com o protagonismo de determinados atores e em determinado lugar. Pode, ou não, mudar de nome. Mas o fato é que o lavajatismo, significando nesse caso um modelo de prática de Lawfare – o uso do sistema de justiça com intenções claramente políticas para perseguir pessoas anteriormente determinadas – permanece em plena atividade.
A Lava Jato – e isso é certo – sofreu fortes abalos e está hoje muito mais ligada ao grupo político de Jair Bolsonaro (sem partido) que ao de Sérgio Moro. O que não a torna, em hipótese alguma, mais próxima do campo da legalidade e da aplicação da justiça. O quanto disso poderá resultar em consequências favoráveis à correta aplicação do Direito e à revisão de julgados e procedimentos ainda é um processo em disputa.
Artigo originalmente publicado no Brasil de Fato