Em regra, a História da humanidade não é muito generosa com os atletas que se manifestam politicamente em defesa das liberdades, de justiça social e em protestos contra governos autoritários. O processo redentor só acontece após intensa luta social, nunca na conjuntura dada.
Os Estados Unidos, país onde a luta contra a segregação racial é intensa, possui casos emblemáticos que mostram que o tempo não faz com que lições sejam aprendidas para evitar práticas discriminatórias e excludentes. Cada vez é uma. O processo de aprendizagem é contínuo.
No ano de 1968, nas olimpíadas do México, Tommie Smith e John Carlos, atletas negros norte-americanos, respectivamente medalha de ouro e bronze na prova dos 200 metros rasos, subiram no pódio olímpico, ergueram os punhos com luvas negras e fizeram a saudação Black Power, dos Panteras Negras, em protesto contra o racismo e a injustiça em seu país.
Como resultado do seu gesto, Smith e Carlos foram suspensos da condição de atletas pelo Comitê Olímpico dos Estados Unidos, acusados de “desconsideração aos princípios olímpicos”. Nos anos seguintes trabalharam como segurança e zelador, sofreram privações básicas. Levaram anos para ter reconhecimento como grandes atletas.
No recente ano de 2016 o quarterback do time de futebol americano San Francisco 49ers, Colin Kaepernick, jogador negro, teve seu contrato rescindido ao final da temporada, por adotar o gesto de se ajoelhar durante a execução no hino nacional, em protesto contra a violência policial em relação aos negros.
Kaepernick virou símbolo da luta antirracial, uma das fortes vozes do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam). Mas, boicotado pela NFL, a liga de futebol americano, até hoje não possui time.
No Brasil, o mais conhecido movimento de atletas na política aconteceu na década de 1980, ainda durante a ditadura civil-militar, quando os jogadores do Corinthians, um dos times mais populares do país, resolveram criar um movimento chamado de “democracia corintiana”, liderado por jogadores famosos como Sócrates e Casagrande.
Movimento que cresceu e se tornou um forte símbolo de luta pela democracia no Brasil. Atletas do clube entraram nas campanhas pelas eleições livres e diretas no país.
Diversas situações na atual quadra da conjuntura politica brasileira nos fazem ponderar se estamos, de fato, em um Estado democrático de direito. A perseguição institucionalizada a quem se manifesta politicamente contrário ao governo Bolsonaro é impressionante, e vai da produção de dossiês dentro do Ministério da Justiça contra cidadãos e movimentos que se intitulam antifascistas, a arbitrariedades cometidas dentro das instituições de ensino e censura imposta a jornalistas por juízes.
No dia 20 de setembro, uma atleta do vôlei de praia, Carol Solberg, proferiu um grito de “Fora, Bolsonaro!” no final de uma entrevista para o canal SporTV, após conquistar a medalha de bronze no Circuito Brasileiro de Vôlei de Praia, em Saquarema (RJ).
Que a jogadora seria atacada publicamente das formas mais tacanhas, machistas, misóginas e depreciativas já era esperado. Há um modus operandi na militância bolsonarista, em que essa prática é obrigatória.
O espanto ficou por conta da denúncia apresentada ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) pela procuradoria do órgão, pedindo que a jogadora carioca recebesse penalidade máxima: uma multa de R$ 100 mil e suspensão por seis torneios.
Os fundamentos? “Deixar de cumprir o regulamento da competição”, e “assumir qualquer conduta contrária à disciplina ou à ética desportiva não tipificada pelas demais regras do código” (arts. 191 e 258, do Código Brasileiro de Justiça Desportiva – CBJD).
Pode-se perguntar: que regulamentos ela descumpriu ao gritar uma frase em uma entrevista após o jogo? A propósito, eles podem punir atletas por coisas ditas fora dos jogos, que não se relacionem ao esporte? Que condutas feriram a ética e a disciplina desportiva?
Mais uma vez, os instrumentos legais estão sendo usados de forma ilegítima, para calar quem tem voz ativa e se manifesta contra o governo Bolsonaro
No julgamento da 1ª Comissão Disciplinar do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) do vôlei, que aconteceu na tarde desta terça-feira, 13 de outubro, Carol recebeu uma advertência e uma multa no valor de R$ 1 mil. A decisão foi por maioria de 3 a 2.
A punição assume caráter quase simbólico em relação ao pedido. Mas possui valoração de resultado: houve uma condenação do ato! Uma mensagem de “é um erro e não pode se repetir” foi dada, não apenas a ela, mas a qualquer atleta que pense em se manifestar politicamente. A depender do conteúdo da manifestação e a quem se dirige, evidentemente.
O fato inexorável é que, mais uma vez, os instrumentos legais estão sendo usados de forma ilegítima, para calar quem tem voz ativa e se manifesta contra o governo Bolsonaro. A prática de perseguição, levada a termo nas instituições do Estado, chegam a todas as organizações e corporações.
A liberdade de expressão é vilipendiada e criminalizada. Extrapola-se o nível do apoio silente e passa-se à colaboração explícita. O autoritarismo se manifesta nas microestruturas de poder, como diria Foucault. E o autoritarismo, evidentemente, é seletivo em relação a quem atingir.
Ao recusar a neutralidade de mentirinha, que tenta reduzir atletas a seres autômatos, sem opinião e sem pensamento crítico, sempre dentro das conveniências, ela cria uma demanda por mudança de paradigma
A Confederação Brasileira de Voleibol – CBV, que disse, sobre o grito de Carol, que “tomará todas as medidas cabíveis para que fatos como esses, que denigrem a imagem do esporte, não voltem mais a ser praticados” é a mesma entidade que, no ano de 2018, no mundial de vôlei masculino assistiu aos jogadores Wallace e Maurício posaram para fotos fazendo o número 17 com os dedos, número de Jair Bolsonaro à presidência, após uma vitória do Brasil, e disse na ocasião que “acredita na liberdade de expressão e, por isso, não se permite controlar as redes sociais pessoais dos atletas, componentes das comissões técnicas e funcionários da casa”.
Ora, ora, as fotos foram tiradas na quadra após o jogo, hipótese idêntica ao grito de Carol. Um caso é liberdade de expressão e o outro punível?
Sintomático, pois não?
Por outro lado, enganam-se os que imaginam que Carol agiu no calor da emoção, por impulso ou o que o valha. As manifestações no seu perfil no Instagram mostram uma jovem mulher engajada e com muita consciência social. Ela enfrentou o debate de forma admirável, afirmando que atletas devem se posicionar politicamente, e respondeu altivamente no julgamento que não se arrepende por ter exercido sua liberdade de expressão.
Se para que ela continue praticando sua profissão, seja preciso emprestar-lhe nossa voz, que seja em coro. E se for pra gritar, que seja alto: Fora, Bolsonaro!
A coragem dessa moça no esporte, uma profissão cuja composição majoritária é de pessoas alienadas, que quando se manifestam têm posições à direita, que se preocupam geralmente apenas com suas carreiras, ou se fingem “de mortos” para lavar as mãos diante do que vive o Brasil, é muito admirável e deve ser saudada, brindada, honrada.
Ao recusar a neutralidade de mentirinha, que tenta reduzir atletas a seres autômatos, sem opinião e sem pensamento crítico, sempre dentro das conveniências, ela cria uma demanda por mudança de paradigma.
O efeito nos Estados Unidos e no mundo da popularidade do movimento Black Lives Matter, a adesão de atletas de todas as modalidades, o boicote das equipes que ocasionou adiamento de vários jogos dos playoffs, os milionários jogos de basquete da NBA, dão mostra de como vozes que possuem o poder de comunicação podem gerar movimentos de mudanças, e serem ouvidas nos quatro cantos.
Apesar disso, lá como cá, o Partido Republicano e os seguidores de Donald Trump tentam criminalizar o movimento e os atletas.
Carol é semente. Assim como Tommie Smith, John Carlos, Kaepernick, Sócrates e outros, que emprestam suas vozes em defesa da justiça, da democracia e dos direitos humanos. Sua resiliência é lição para o futuro. Diante do horror dos tempos que vivemos, só a resistência é capaz de resgatar o país.
Sementes viram árvores, flores, frutos. O exemplo não se perde, sua voz continua sendo ouvida. E se para que ela continue praticando sua profissão, seja preciso emprestar-lhe nossa voz, que seja em coro. E se for pra gritar, que seja alto: Fora, Bolsonaro!
Artigo originalmente publicado no Brasil de Fato