Como a Fênix, FHC às vezes ressurge das cinzas da História para dar lições de moral e fazer advertências apocalípticas. É um insuspeitado traço de generosidade do ex-presidente, pois acreditamos que ninguém as pede. As lições e, muito menos, as advertências. Suspeitamos também que ninguém as leve muito a sério.
Em sua última e reluzente aparição, o ex-presidente escreveu que Lula é um “mago do ilusionismo”, já que engana a população, e que e “hegemonia do PT” ameaça a democracia.
Trata-se de tocante demonstração de modéstia do ex-presidente. Na realidade, a prestidigitação política de FHC não encontra paralelo. Perto dele, Lula é somente um desajeitado aprendiz de feiticeiro. O verdadeiro mago do ilusionismo é ele.
Com efeito, o seu governo esteve repleto de truques inacreditáveis, que fariam corar de vergonha o mestre Houdini.
Um grande truque foi ter feito desparecer parte do patrimônio público brasileiro, em alguns casos a preços milagrosamente baixos. Com efeito, nas Black Fridays dos leilões das privatizações muita coisa despareceu, muita coisa se perdeu, muita gente ficou rica e, até hoje, ninguém conseguiu desvendar o truque. Os que tentaram estão sendo processados. Outro bom número de magia foi o do populismo cambial, que fez enorme sucesso entre nossa classe média. Vender Real a preço de Dólar não é para qualquer um, convenhamos. Esse número, esticado ao máximo, fez desaparecer os nossos históricos superávits comerciais e o equilíbrio das contas externas. Além disso, assegurou a fácil reeleição de FHC. Uma jogada de mestre.
Outra jogada de mestre foi ter sumido com a parte da Constituição que proibia a reeleição. Truque difícil e delicado, que foi executado com timing matemático. Timing matemático e contabilidade obscura. Um número de ilusionismo discreto, mas de notável sucesso, foi o da “gaveta mágica” do antigo Procurador Geral. Dizem que nela havia até um buraco negro. Toda denúncia que lá caia não deixava rastos. Como em num buraco negro, nem a luz escapava. Feito extraordinário de ilusionismo político e jurídico.
Mas o grande feito que os antigos membros do governo FHC tentam ainda hoje é desaparecer com a memória e a História do país. É o grande e definitivo truque.
Tome-se como exemplo a “ameaça à democracia” ocasionada pela “hegemonia do PT”.
Trata-se, de novo, de demonstração de modéstia do ex-presidente. Comparado com a atual “hegemonia do PT”, a antiga hegemonia do seu partido, o PSDB, era simplesmente mágica.
Com efeito, auxiliado pela magia do Plano Real, que produziu efeitos distribuidores de renda no curto prazo e promoveu o mencionado “populismo cambial”, o governo de FHC, eleito facilmente em primeiro turno, conseguiu formar uma maioria parlamentar e política que faria corar o “hegemonista” mais convicto. Na Câmara dos Deputados, o partido que hoje “ameaça a democracia” tinha apenas 49 parlamentares e a oposição como um todo reunia pouco mais que uma centena de deputados. Assim, o governo FHC tinha à disposição uma maioria bem mais que ilusória de quase 400 parlamentares. No Senado, a situação era pior, pois os hoje “hegemônicos” tinham apenas cinco senadores e a oposição como um todo menos do que 20.
Tal maioria permitiu que, do alto da presidência da Câmara, o deputado Luiz Eduardo Magalhães operasse, alegre e profusamente, o seu famoso “rolo compressor” para tirar da cartola truques constitucionais e legais, sempre a serviço “dos interesses maiores do país”, é claro, como a abertura, sem critérios, das portas da economia brasileira ao capital estrangeiro, e a privatização, sem planejamento adequado, do patrimônio público.
Saliente-se que a extrema fragilidade da oposição da época de FHC, especialmente em seu primeiro governo, tinha dois sérios agravantes. Em primeiro lugar, vivíamos a hegemonia inconteste do paradigma neoliberal, do pensamento único. O pensamento mágico moderno que tenta explicar tudo pela ilusão operada pelos mercados. Assim, os débeis protestos dos hoje “hegemônicos” eram sempre rapidamente desclassificados como manifestações “jurássicas” e “neobobas”. Em segundo, a grande mídia, hoje confessadamente um partido de oposição, era, naquela época de democracia inconteste, um dedicado e obediente partido da situação.
Milagrosamente, ninguém na época se preocupava muito com essas ameaças à democracia.
Entretanto, esse grande truque de fazer desaparecer a História do país não parece estar funcionando muito bem. A plateia despediu FHC com ralos aplausos: apenas 32 % de popularidade. Lula, ao contrário, recebeu uma verdadeira consagração de mais de 80%. E, ao que consta, Lula e Dilma, que “ameaçam a democracia”, segundo o Mago, foram eleitos em pleitos limpos, sem nenhuma magia constitucional marota e sem apoio da mídia.
Mas, os conservadores, velhos ilusionistas que são, ainda têm uma carta mágica na manga: fazer desaparecer a legitimidade do voto popular. É um velho truque de extremo mau gosto, que parece ter caído em desuso.
Parece. Mas o desespero dos velhos e resentidos magos tenta ressuscitá-lo. Tudo em nome da democracia.