A nova ameaça ao Mercosul – Artigo de Marcelo Zero

Assessor da Liderança do PT no Senado aponta que Aécio Neves repete José Serra – e prega o fim do bloco

O Mercosul lembra o caso do escritor Mark Twain, que teve a ingrata tarefa de desmentir notícias de sua morte. Twain estava em Londres quando surgiram boatos sobre seu falecimento. Com sua habitual ironia, afirmou: “Os rumores sobre a minha morte foram grosseiramente exagerados”.

Com o Mercosul se passa algo semelhante. Desde o nascimento, vaticinam seu iminente falecimento. Na época da assinatura do Tratado de Assunção, não faltaram ironias sobre a união “dos rotos com os esfarrapados” e críticas ácidas em relação à suposta inviabilidade de um bloco fadado a ser absorvido em processos de integração mais amplos com países desenvolvidos.

Ao longo dos anos, também não faltaram aqueles que defenderam que o Mercosul renunciasse a sua união aduaneira e se transformasse numa mera área de livre comércio, de modo a permitir integração supostamente mais dinâmica com o “comércio globalizado”. Consideravam o Mercosul um arcaísmo “terceiro-mundista” e sonhavam com a miragem neoliberal da Alca.

Com a crise mundial, voltaram a condenar o Mercosul e a sugerir o fim da sua união aduaneira, de modo a que os Estados Partes possam negociar independentemente acordos bilaterais de livre comércio com países desenvolvidos, particularmente com os EUA e a UE.  É a velha tese do “cada um por si”, que contrasta com a estratégia de somar forças pela integração e aceder, em melhores condições, aos mercados mundiais.  

Recentemente, o lançamento da Aliança do Pacífico, bloco que reúne Peru, Colômbia, Chile, México e Costa Rica, aguçou as críticas contra o Mercosul. A Aliança foi apresentada pelos setores conservadores da mídia como o bloco do futuro, das economias mais “dinâmicas” e “integradas ao comércio mundial”. Em contraste, o Mercosul foi novamente caracterizado como um bloco moribundo, uma espécie de aliança autárquica, que condena os seus Estados Partes ao atraso e à baixa integração com as “cadeias produtivas globalizadas”.

Bom, em primeiro lugar, é preciso afirmar que a Aliança nada mais é que uma jogada de marketing geopolítico que não altera a realidade econômica da América do Sul. O Brasil e o Mercosul já têm livre comércio com todos os países da América do Sul, inclusive os que fazem parte da Aliança. As únicas exceções são a Guiana e o Suriname. Com o México, o Brasil tem também dois importantes acordos de preferência comerciais. Além disso, os países da Aliança do Pacífico, por força de acordos firmados no âmbito da Aladi, têm, há bastante tempo, livre comércio entre si. Em outras palavras, a Aliança “chove no molhado”.

Em segundo lugar, o Mercosul é um claro sucesso comercial e econômico. Desde a sua criação, em 1991, as exportações intrazona aumentaram 13 vezes. Já as exportações brasileiras para o bloco aumentaram 12 vezes. Nos últimos 10 anos, nosso superávit acumulado com o bloco ascendeu a US$ 51 bilhões. Apenas no passado (2013), já considerando a Venezuela, o Brasil obteve um superávit de US$ 9 bilhões com o bloco. Além disso, cerca de 90% das nossas exportações para o Mercosul são de produtos manufaturados. Para União Europeia, China e Estados Unidos, as exportações de manufaturados são de 36%, 5% e 50%, respectivamente.

Na realidade, o Mercosul é o principal destino das exportações da nossa indústria, um setor econômico que é deficitário em sua balança comercial global. Não fosse o Mercosul, e a integração latino-americana, a nossa indústria estaria em situação muito pior.

Em relação à crítica de que o Mercosul impede uma maior participação dos Estados Partes no comércio mundial, é necessário levar em consideração que, entre 2003 e 2011, as exportações extrazona do bloco, isto é, as exportações para países que não fazem parte do Mercosul, foram multiplicadas por quatro. Em contraste, as exportações mundiais foram multiplicadas por um fator de apenas 2,8. Em outras palavras, as exportações do Mercosul cresceram bem mais que o aumento do comércio internacional. Portanto, essa história de que o Mercosul “atrasa” o Brasil é para inglês ouvir e boi brasileiro dormir.

O Mercosul só não aumenta mais sua participação no comércio mundial porque muitos países desenvolvidos não aceitam, nas negociações, a liberação do comércio agrícola e, por outro lado, propugnam intransigentemente por uma maior abertura do comércio de manufaturados. O Mercosul e o Brasil, ao contrário da Aliança, preferem um bom acordo a qualquer acordo.

Ademais, o Mercosul, que se espelha no exemplo da UE, vem dando passos largos na criação de instituições supranacionais, como o Parlamento do Mercosul, destinado a criar e dar voz à cidadania comum. Áreas de livre comércio, lembre-se, não constroem cidadanias, constroem muros.

É claro que, em função principalmente da crise mundial, alguns países do Mercosul, como a Argentina e a Venezuela, vêm passando por momentos difíceis, o que afeta o desempenho e o bom funcionamento do bloco. Mas são fenômenos conjunturais, que não têm relação com uma suposta deficiência intrínseca do processo de integração.

A crise desses países deve ser enfrentada com mais integração, não com o esfacelamento da união aduaneira. O problema essencial desses Estados Partes é cambial, e o bloco deveria contribuir para explorar mais alguns mecanismos de trocas comerciais em moeda local, como o Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR) da Aladi e o Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML), em vigor no âmbito bilateral Brasil/Argentina, bem como criar outros. Lembramos também que o Banco do Sul tem, como um dos seus objetivos, desenvolver um sistema monetário regional.

Entretanto, mesmo com essas realizações, o Mercosul com união aduaneira, tal como foi idealizado, continua a gerar resistências entre os conservadores de todos os Estados Partes.

Pois bem, na atual conjuntura, há dois fatores específicos que põem o bloco em risco.

O primeiro tange à atual negociação Mercosul-União Europeia. Trata-se de uma negociação muito ampla, a qual prevê, além de concessões comerciais estrito senso, cláusulas relativas ao regime dos investimentos, que podem criar privilégios para investidores europeus, dispositivos sobre propriedade intelectual, que poderiam comprometer nosso desenvolvimento científico-tecnológico, assim como a abertura ainda maior do nosso setor de serviços e do setor de compras governamentais.

As últimas ofertas de parte a parte ainda não são de conhecimento público, mas se pode antecipar que dificilmente a UE fará concessões significativas no setor agrícola, fortemente protegido por uma montanha de subsídios. Por outro lado, pode-se antecipar também que a UE pressionará muito para obter concessões substancias no setor industrial e no setor de serviços, bem como para incluir cláusulas bem restritivas de proteção à propriedade intelectual e bastante liberalizantes para seus investidores.

Os europeus, em virtude das políticas pró-cíclicas e contracionistas que implementam atualmente, estão desesperados para ocupar os nossos mercados. É a única maneira que eles têm de amenizar a crise intrabloco. Isso não preocuparia, caso o nosso setor industrial, potencialmente o que seria mais prejudicado por um acordo ruim, mantivesse sua tradicional cautela, no âmbito das negociações.

Não obstante, houve, nos últimos tempos, uma mudança de atitude que é preocupante. Alguns representantes desse setor agora defendem um acordo urgente com a UE, sob o argumento de que a indústria brasileira está ficando fora “das cadeias produtivas globais”. Porém, essa é uma clara falácia.  Em primeiro lugar, porque a indústria brasileira não está, na realidade, fora das cadeias produtivas globais. Em segundo lugar, porque nenhum país participa, em posição vantajosa, das cadeias produtivas globais, simplesmente em razão da celebração de acordos de livre comércio. No máximo, tornam-se países que hospedam montadoras e que são incapazes de produzir inovação tecnológica, como o México, campeão mundial de adesão a esse tipo de tratado. A China e a Coreia tornaram–se o que são hoje não porque celebraram acordos de livre comércio de forma incondicional, mas sim porque investiram em suas cadeias produtivas nacionais e regionais e impuseram, aos investidores estrangeiros, condições estritas para a exploração de seus mercados, como, por exemplo, a exigência chinesa de criação de joint ventures.

Isso nos conduz ao segundo e principal fator que expõe o Mercosul a grave risco, que é o relativo às mudanças na política externa que propõe a oposição, notadamente seu principal candidato, o ex-governador Aécio Neves.

Na cartilha elaborada pelo candidato, se menciona que o bloco precisa voltar a ser o que era quando da sua concepção: “uma área voltada à liberalização do comércio e à abertura de mercados” e que a negociação de um acordo entre Mercosul e União Europeia deve ser concluída rapidamente, mesmo que, para tanto, “o Brasil avance mais rapidamente que outros membros do bloco”.

Para bom entendedor, meia palavra basta. Aécio propõe exatamente o que Serra, que se referia ao Mercosul depreciativamente como a “integração cucaracha”, propunha: o abandono progressivo da união aduaneira, de forma a celebrar rapidamente acordos de livre comércio com os EUA a UE e outros “parceiros tradicionais”. Dessa forma, o Mercosul viraria uma espécie de Alcasul. É claro, que, nesse contexto, a dimensão da livre circulação de trabalhadores, a construção de entidades supranacionais, inclusive o parlamento, e a criação de uma cidadania comum não fazem o menor sentido. Numa área de livre comércio, não há racionalidade política para essas construções, já que, nesse caso, a racionalidade da integração é dada exclusivamente pelos mercados. Os progressos realizados graças ao Focem, fundo para combater as assimetrias regionais, aos acordos para a livre circulação de trabalhadores, inclusive o Acordo de Residência para os Nacionais dos Estados Partes do Mercosul, e ao Parlasul, teriam de ser abandonados e revertidos.

Elaborada, sem dúvida, por uma brava e moderna equipe de embaixadores saudosos das promessas paleoliberais da malsucedida Alca, a cartilha do candidato contém ainda outras pérolas do pensamento conservador, como a ideia de que o Brasil está “isolado” e que a política externa atual é “partidarizada”. O candidato parece querer a volta da antiga política externa que, esta sim, fragilizou o país e diminuiu nosso protagonismo no cenário internacional. A política externa do partido do Consenso de Washington.

Para complicar, o candidato Aécio afirmou clara e explicitamente, em recente palestra no Rio Grande do Sul, que quer “o fim do Mercosul”.

O Mercosul já sobreviveu a muita coisa e sempre desmentiu seus críticos. Contudo, é bom se precaver. Desta vez, os rumores poderão não ser exagerados.

  

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