No dia 3 de outubro a Petrobras completou 66 anos seriamente ameaçada por um plano governamental de desmonte e esvaziamento disfarçado de especialização e eficientização. Não é novidade que desde que ocupou a cadeira de presidente da República reconhecendo “nada entender sobre economia”, Jair Bolsonaro deu plenos poderes ao banqueiro e gestor de fundos financeiros Paulo Guedes. Para além das políticas econômicas em si, o vizir ultraliberal, estreante em assuntos de gestão pública, também se arrogou do papel de definir o destino das estatais brasileiras, seja indicando seus dirigentes, influenciando seus conselhos e/ou determinando sua extinção, fracionamento ou venda. Mais do que o direcionamento ideológico do Ministro, o que contesto é sua alarmante estratégia de previamente desmantelar e desvalorizar tais empresas por dentro, para facilitar sua venda. São manobras que desconsideram tanto os princípios da Administração Pública como as desvantagens que advirão para a população e para os setores produtivos brasileiros.
Um exemplo desta estratégia é a adoção de medidas gerenciais esdrúxulas como a imolação voluntária de oito refinarias da Petrobras diante do CADE para venda, sem que ao menos o respectivo processo investigatório de práticas não competitivas tivesse chegado ao fim. Antes disso, diante da inércia de parte dos líderes políticos, empresariais e militares, foram vendidas algumas das subsidiárias mais importantes da estatal: a BR Distribuidora (líder em postos de combustíveis e dona de um terço da fatia de mercado nacional), a Liquigás (líder do mercado de botijões de gás no país) e a TAG (operadora única de todos os gasodutos do Norte e do Nordeste).
O silêncio de um falso consenso, conivente, é ensurdecedor – explicável pelo desinteresse da mídia brasileira em esmiuçar e prever os seríssimos efeitos e a relativa irreversibilidade destas medidas – a maioria delas tomadas sem qualquer esclarecimento e discussão ampliada. Por outro lado, é despropositado apontar os casos recentes de má gestão, turbinando práticas de financiamento eleitoral históricas, como substrato suficiente para vender o controle e os ativos de subsidiárias e holdings estatais. Tais práticas, mesmo com grandes e desnecessárias extrapolações políticas, foram reveladas, investigadas e punidas, e isso deverá ocorrer a qualquer tempo e lugar no Brasil, sem servir de pretexto para se abrir mão do controle estatal e do papel socioeconômico que desempenham as estatais brasileiras.
A razão para tais vendas é uma pretensa concentração de portfólio na exploração e produção do petróleo em águas profundas, bem como do seu respectivo refino na região Sudeste. Mas até mesmo os acionistas privados aos quais se tem vendido vantagens nesta alegada racionalização dos investimentos deveriam perceber que este plano deverá reduzir drasticamente o tamanho da empresa já no curto e médio prazo, ao mesmo tempo em que deverá aumentar o risco de aprisionamento a um único mercado regional a partir de um único ambiente operacional de produção.
Recentemente as regiões Norte e Nordeste encontram-se apreensivas, repletas de rumores de que a Petrobras estaria liquidando seus ativos e abandonando as operações que tem nessas áreas. É mais um capítulo desse arriscado processo de afunilamento de atividades, abrindo mão de suas atuações em ambientes como a selva amazônica, os campos terrestres não-marginais do Nordeste, a margem oceânica equatorial, o xisto paranaense e a margem oceânica atlântica nordestina, além dos mercados de distribuição de combustíveis, biocombustíveis, gás liquefeito e gás natural. A Petrobras desenvolveu uma expertise singular, que a situa como referência internacional – numa vantagem competitiva que se quer, surpreendentemente, descartar. Neste caso, o agravante é o fato de o processo ser conduzido de forma quase sub-reptícia: enquanto seus dirigentes afirmam a governadores e parlamentares dos Estados que irão manter ou incrementar investimentos locais, técnicos e gestores estão sendo realocados, sedes regionais estão sendo esvaziadas e terceirizados estão sendo demitidos.
É grave que o resultado de décadas de construção de um conglomerado estatal destinado a atuar em favor do interesse público brasileiro esteja sendo desmontado por esse nebuloso projeto político-ideológico que tem como alicerces a submissão dos ativos estratégicos nacionais ao mercado financeiro e a entrega do controle de recursos naturais estruturantes para o País ao capital internacional. A Frente Parlamentar em Defesa da Petrobras continuará construindo argumentos, mobilizando forças e propiciando o debate aberto de modo que finalmente haja espaço para se traga à luz as objeções concretas, e os consequentes impedimentos judiciais e parlamentares a este grande equívoco que pode resultar em perdas irreparáveis à Petrobras e aos setores produtivos brasileiros.
Não podemos simplesmente jogar fora a autossuficiência em petróleo que conquistamos ao logo de décadas de trabalho, investimento e ciência. É o que faremos ao fazer ontem, celebrar hoje, e lamentar amanhã a venda dos ativos estatais, que resultará na submissão integral do Brasil às oscilações do mercado internacional de petróleo contra as quais justamente lutamos tanto para nos blindar. Um governo que deseja encolher a Petrobras na surdina sempre encontrará nos espaços democráticos resistência daqueles que rejeitam a submissão, e aspiram um Brasil mais rico, justo e humano.