Como afirmei, o golpe cruzou o Rubicão da democracia. Entrou em sua terceira e mais obscura fase. A fase do não-retorno, a fase da extirpação definitiva da soberania popular. O maior líder popular da nossa história está ameaçado de ser preso, mesmo com provas claras de sua inocência, para que a eleição de 2018 se converta numa gigantesca fraude. Vivemos agora numa democracia tutelada por poderes sem votos e num Estado de exceção repressor.
A interdição política de Lula estava clara como água desde o início do golpe. Afinal, não se faz uma aposta num golpe para depois devolver o poder ao “inimigo”.
O que não está claro, no entanto, é como a democracia brasileira pode ruir como um castelo de cartas de um dia para ao outro. Todo o mundo sabe como o golpe se processou, todo o mundo entende as motivações, todo mundo sabe porque Dilma foi derrubada, todo o mundo sabe porque Lula tem de ser preso, mas ninguém responde com acuidade a pergunta essencial: como pudemos descer tão baixo em tão pouco tempo? Por que as instituições democráticas falharam, todas elas, de forma tão deplorável? Como, em poucos meses, nos tornamos, de novo, uma patética república bananeira?
A prestigiada ONG Brot für die Welt, ligada à Igreja Evangélica da Alemanha (EKD), que elabora o AtlaS das Sociedades Civis, nos coloca agora ao lado de outros 52 países onde a livre expressão das liberdades individuais é “limitada pelos governantes por meio de uma combinação de obstáculos legais e práticas”. Estamos no mesmo nível de países como Indonésia, Moçambique e Haiti. O Haiti é aqui,
Algo profundo se rompeu em nossa sociedade.
De fato, essa nova realidade política representa uma clara ruptura com o status quo político-institucional que havia se criado com a Constituição de 1988.
No Brasil pós-ditadura, as disputas em geral envolveram forças de esquerda e centro-esquerda contra forças de centro-direita e direita que competiam pelo voto do centro político e dos indecisos. Havia duas características marcantes nessas disputas: os projetos políticos antagônicos estavam canalizados em grandes partidos institucionalizados (com a trágica exceção de Collor) e todas as forças davam apoio explícito à consolidação da democracia no Brasil. Senão a uma democracia social e substantiva, pelo menos à democracia política e formal.
Havia, assim, uma espécie de pacto implícito pelo qual todas as forças políticas relevantes reconheciam a democracia como valor universal e imprescindível para fazer avançar o desenvolvimento do país. Todos os atores políticos significativos apostavam na consolidação crescente das instituições democráticas e na atividade política, que se confundia com a democracia, como elemento central no processo decisório dos rumos do Brasil. Mesmo com as limitações estruturais óbvias da democracia brasileira, que alijava a maior parte da população de direitos sociais e políticos básicos, havia essa disposição praticamente consensual para aprofundá-la e consolidá-la, sentimento natural num país que havia acabado de sair de décadas de ditadura. Afinal, as grandes campanhas pela anistia e pelas “Diretas Já” haviam unido e galvanizado praticamente todas as forças vivas da sociedade. Ulysses, Tancredo, FHC, Serra, Lula e Brizola haviam subido juntos no mesmo palanque pró-democracia.
Entretanto, esse pacto, plasmado na Constituição de 1988, foi respeitado, em seus aspectos básicos, enquanto a esquerda foi uma força minoritária controlável, que servia como elemento legitimador de uma democracia ainda em construção. Partidos como PT, PDT, PC do B, etc. faziam oposição aguerrida, mas não ameaçavam a agenda conservadora dos donos do poder e a hegemonia ideológica do neoliberalismo em ascensão no mundo e no país. FHC, em sua arrogância típica das “elites” tupiniquins, os chamava condescendentemente de “neobobos”. Era uma oposição consentida e tolerada, incapaz de disputar realmente o poder.
Desse modo, ao contrário do aconteceu na Europa, por exemplo, a “estabilidade” democrática brasileira esteve baseada num desequilíbrio estrutural das forças políticas e na ausência de alternância real de poder.
Com efeito, em situações normais, a estabilidade política das democracias capitalistas avançadas estava embasada num equilíbrio pendular que envolvia a disputa democrática do centro político. Em certas conjunturas, o centro político se deslocava para a direita, fazendo que partidos de centro-direita tivessem hegemonia. Em outras, o centro político se deslocava para a esquerda, configurando governos de centro-esquerda ou socialdemocratas.
Esse equilíbrio pendular foi particularmente importante no pós-guerra, a fase que Hobsbawn denominou “de ouro” do capitalismo, na qual houve crescimento econômico, distribuição de renda, construção de um moderno Estado de Bem-Estar e estabilidade política. Nessa fase, as instituições democráticas e políticas, inclusive os partidos, foram capazes de limitar e arbitrar os conflitos distributivos inerentes à acumulação capitalista.
No Brasil, até a chegada do PT ao poder, nas eleições de 2002, isso não havia acontecido, após a redemocratização. Apesar das experiências trágicas do segundo governo de Getúlio Vargas e do governo João Goulart, muitos acreditaram que a democracia brasileira havia amadurecido o suficiente para lidar com um governo moderado de centro-esquerda, dedicado à promoção da inclusão social e à erradicação da pobreza e das desigualdades.
Por um breve momento histórico parecíamos emular, mutatis mutandis, as experiências exitosas da socialdemocracia europeia clássica. A nossa democracia aparentava ter amadurecido e ser capaz de lidar e de negociar com os conflitos distributivos inerentes às economias capitalistas. Apesar das muitas resistências e dos preconceitos, os governos Lula e Dilma conseguiram, por algum tempo, promover a inclusão social de vastas parcelas da população e reduzir substancialmente a pobreza e as desigualdades, num quadro de acirrada oposição, mas de relativa estabilidade democrática.
Contudo, esse quadro mudou súbita e drasticamente quando a crise, somadas às pressões das políticas distributivas sobre os lucros, começou a afetar os interesses do grande capital, especialmente do grande capital financeirizado, e dos seus setores políticos aliados. Num átimo, a ilusão com o amadurecimento da democracia brasileira foi jogada ao chão sujo de um golpe bananeiro. O histórico desequilíbrio estrutural entre as forças políticas distribuídas nos campos opostos do espectro político foi restabelecido na marra, contra 54,5 milhões votos. A centro-esquerda brasileira foi varrida do cenário político, mesmo depois de ganhar 4 eleições seguidas. Rompeu-se com a alternância democrática entre as forças políticas e com o pacto político plasmado na Constituição de 1988.
Claro está que em situações de crise o equilíbrio político entre polos ideológicos distintos e a capacidade das instituições de absorver e dirimir conflitos podem se tornar voláteis e incertos, em quaisquer democracias. Nessas situações, os conflitos distributivos se tornam intensos e frequentemente extrapolam a capacidade do sistema de representação e das instituições democráticas de absorvê-los e arbitrá-los. Assim, há uma tendência de dissolução do centro político e de crescimento de forças à esquerda e à direita. A luta de classes, nessas circunstâncias, extrapola a capacidade das instituições e do sistema de representação de institucionalizar e administrar conflitos, tal como sustentava Ralph Dahrendorf.
Tudo isso ocorreu e ocorre nas democracias europeias e nos EUA. Não é segredo para ninguém que há uma crise geral das democracias e dos sistemas de representação política, fortemente golpeados pelas desigualdades ocasionadas pelas políticas neoliberais. Como fica evidente em obras como a de Picketty, o padrão de acumulação capitalista do século XXI parece cada vez mais incompatível com a democracia.
Uma democracia neoliberal tende a ser um unicórnio.
Contudo, no Brasil há um sério agravante. Ao contrário do que ocorre, por exemplo, na Europa, aqui a direita e a centro-direita tradicionais insuflaram um fascismo ascendente e apostaram tudo na ruptura democrática.
As nossas oligarquias econômicas e políticas, que nunca foram elites, no sentido que Pareto e Mosca emprestam ao termo, romperam com a democracia. Romperam com a democracia e romperam com o país. Essa é que é a triste verdade.
Insuflaram as forças mais retrógadas do Brasil para dar um golpe contra a presidenta honesta e colocar no poder a “turma da sangria”. Saíram às ruas junto com Bolsonaro, MBL e outros grupos protofascistas, que pediam intervenção militar e condenavam a democracia e a política de um modo geral. Chocaram o ovo da serpente que injetaria veneno mortal em nossas instituições democráticas.
Em sua obsessão irracional de tirar o PT do poder a qualquer custo, abriram a caixa de Pandora do nosso fascismo tupiniquim, que agora floresce e os engole. Na sua sanha em derrubar a presidenta eleita, destruíram a democracia e jogaram na lama o voto popular. Em sua tentativa de limar a credibilidade do PT, destruíram a legitimidade de todo o sistema de representação política.
Insuflaram também juízes e procuradores messiânicos contra PT e acabaram destruindo a construção pesada brasileira e assestaram golpe duríssimo contra a engenharia nacional. Acabaram também com a nossa competitividade na exportação de serviços, setor estratégico que mais cresce no mundo. Erodiram a credibilidade da justiça e transformaram o próprio STF em biruta de aeroporto, que se move, de forma oportunista, conforme o vento político. Não há mais segurança jurídica no Brasil.
As instituições estão em frangalhos e o sistema de representação política tem hoje a legitimidade de um punguista de baixo meretrício. Bolsonaro, uma aberração constrangedora, se firma como um candidato viável, superado unicamente por Lula.
Alguns podem pensar que tudo isso foi um mero erro de cálculo. Erraram na dose autoritária e agora são obrigados a conviver com danos colaterais que podem ser consertados ou contidos.
Há, contudo, uma hipótese mais pessimista e realista: a ruptura com a democracia, com o voto popular e com o pacto da Constituição de 1988 foi planejada e veio para ficar. É uma estratégia de longo prazo que intenta consolidar a agenda ultraneoliberal regressiva e uma “semidemocracia” que não permitirá mais a alternância de poder e quaisquer políticas que se desviem dos dogmas da ortodoxia econômica e de uma inserção internacional subalterna.
Assim, não se trata apenas de prender Lula. Trata-se de prender qualquer Lula.
Voltando às questões iniciais deste artigo (Como pudemos descer tão baixo em tão pouco tempo? Por que as instituições democráticas falharam, todas elas, de forma tão deplorável? Como, em poucos meses, nos tornamos, de novo, uma patética república bananeira?), as respostas são mais simples do que parecem. Não descemos tão baixo, apenas não estávamos tão altos como supúnhamos. As instituições falharam porque não tinham um mínimo de solidez. E o ethos das nossas elites políticas sempre foi, no fundo, o de uma república bananeira. Mediocridade não se improvisa. No nosso caso, temos uma prática de 500 anos. A redemocratização pós-ditadura nunca se completou. Não se sedimentou. Ficamos no meio do caminho de uma semidemocracia.
Agora, essa insuficiência histórica da nossa democracia se soma às novas exigências do capitalismo em crise, que exige limites substanciais à soberania popular.
É duro, mas temos de reconhecer: nas atuais condições do nosso capitalismo, novamente selvagem, a ruína da democracia e da política é funcional e necessária. Não pode ser reconstruída. Tem de ser permanente.
Note-se que não se trata apenas de alijar a esquerda do cenário político, trata-se, sobretudo, de substituir os poderes que se fundam no voto popular por um poder que dele não dependa. Em 1964, foi a casta militar. Hoje é uma amálgama de castas burocráticas civis, aliada ideológica do poder econômico e midiático.
A tendência é termos presidentes e parlamentos fracos, diretamente tutelados por juízes, procuradores, técnicos, economistas do mercado, empresários, barões da mídia, banqueiros, e porque não dizê-lo, grandes interesses estrangeiros. A nossa brava classe media neoudenista com certeza aplaudiria um governo “técnico”, no qual políticos servissem apenas para carimbar decisões pré-estabelecidas pelos reais detentores do poder.
Teríamos, assim, a “política” ideal para o ultraneoliberalismo: a política despolitizada, que não produz alternativas, apenas reproduz o “consenso técnico” ditado por quem não tem voto e, portanto, qualquer compromisso com o povo. Afinal, mesmo políticos de direita têm de ser sensíveis às pressões de eleitores. Mas, com a hegemonia do poder sem voto, as pressões a serem atendidas serão sempre basicamente as do mercado. Remédios amargos poderão ser socados goela abaixo da população sem maiores constrangimentos por políticos fracos e descartáveis, provavelmente eleitos por um número muito pequeno de votos válidos. Com o voto distrital, teríamos apenas grandes vereadores dedicados a defender interesses paroquiais. A “grande política” estaria pré-decidida e seria intocável. Congelada em emendas constitucionais e cinzelada no granito dos grandes tratados internacionais de livre comércio. Boa parte da nossa classe política, beócia incurável, ainda não percebeu o alçapão que para ela foi armado. Acha que é apenas Lula que ficará manietado.
Temer é, nessa quadra histórica, o político ideal: fraco, manipulável e indiferente à rejeição popular. Outros virão. Célebres nulidades, fascistas declarados, os apolíticos da “nova política”, todos alinhados com o ethos excludente, colonial e escravagista do nosso grande Haiti.
Nessa equação política lúgubre falta, contudo, um pequeno detalhe: o povo brasileiro. Até agora, tem se mantido relativamente quieto, mas essa situação não deverá perdurar por muito tempo. E Lula, mesmo eventualmente encarcerado, será bem mais influente que todas as mediocridades políticas somadas.
O tempo não para, dizia o poeta, e tudo que hoje é aparentemente sólido e imbatível poderá se desmanchar no ar da desobediência civil, que nos conduziria a uma nova constituinte que refundasse as bases de uma real e sólida democracia no Brasil.
O Brasil real sentiu, ainda que por pouco tempo, o gosto inebriante da liberdade e da igualdade. Voltará por mais, bem mais.