Em 1847, um ano antes das revoluções de 1848 na Europa Ocidental e da edição do Manifesto Comunista, os operários ingleses, depois de muitas batalhas, conseguiram a regulamentação de 10 horas de trabalho diários. Ali, uma vez conquistadas as 10 horas, de imediato começou a campanha, vitoriosa até hoje em dia, das 8 horas de trabalho. O lema da campanha do movimento operário propalava persuasivamente que uma pessoa, para viver a vida como gente e não como gado, deveria ter direito a um dia de 8 horas de sono, 8 horas de lazer e 8 horas de trabalho. Uma outra economia política era possível.
Marx e Engels escreveram muitas vezes que as vitórias, políticas e parlamentares, das campanhas de redução da jornada de trabalho – especialmente as 8 horas – significavam as primeiras vitórias da economia política do trabalho sobre a economia do capital. Pudera, a revolução industrial custou o sangue e o suor de horas e mais horas de trabalho dos trabalhadores e trabalhadoras, homens e mulheres operando para o patrão em descontrole, até a exaustão físico-biológica do bagaço do corpo.
Pelo desejo do capital, a exploração da mais-valia era absoluta, sem contrapesos sociais de nenhuma espécie. Deixado ao deleite da própria natureza, passa ao largo da lógica do capital qualquer contrapeso social à superexploração do trabalho. No entanto, a marcha da história cuidou de oferecer contrapesos à ação descontrolada do capital. A mais-valia relativizou-se com a regulamentação da jornada. Essa foi a porta de entrada do Estado e da justiça social no mundo do capital, visto que, no começo da revolução industrial, o contrato social se resumia a indivíduos consumidores e p roprietários, excluindo, portanto, o reconhecimento dos trabalhadores.
Esse rico processo de o contrato social, na primeira sociedade burguesa, abrir-se ao princípio do trabalho (vale dizer, da mais-valia absoluta à mais-valia relativa) e reconhecimento dos trabalhadores como agente político, ancorou a luta pela democratização do Estado. Junto vieram as reivindicações das mulheres pela participação no sufrágio eleitoral; enfim, toda a demanda represada de ampliação dos direitos. À guisa de comentário, deve-se entrever que toda essa verdadeira “grande transformação” não ocorreu apenas por meio de um debate intelectual – embora ele tenha sido, &e acute; claro, fundamental. Antes de tudo, os trabalhadores entraram em cena como novo sujeito político.
Dessa maneira, a luta pela redução da jornada, conjugada às batalhas pelo sufrágio universal, os direitos das mulheres etc., logo desembocou, como um de seus principais componentes, em um complexo processo de “constitucionalização do trabalho”. Trata-se talvez da principal forma de acesso à leitura da história contemporânea do século XX.
Neste ínterim, chamo a atenção para a realidade de que são variadas as economias políticas do trabalho. Uma, de conteúdo emancipatório, atende pela tradição marxista. Mas existem outras escolas, a exemplo do fabianismo inglês, as interpelações corporativas do positivismo francês e a economia social alemã, nenhuma dessas revolucionárias, mas atentas ao jogo de reformas no capitalismo. No século XX, apareceram os diversos corporativismos de direita – principalmente o fascismo italiano –, bem como, de nosso especial interesse, as experiências populistas de afirmação nacional latino-americanas, de Vargas, Cárdenas e Péron. Essas experiências divergentes, no entanto, combinam o traço comum de constitucionalizarem o trabalho.
Examinando o processo histórico da perspectiva de hoje, é correto afirmar que os trabalhadores fizeram no século XX, por meio do processo de constitucionalização do trabalho, um acordo fáustico, um jogo de perdas e ganhos. A mais importante de todas essas experiências foi o chamado “compromisso fordista”, especialmente os casos de Welfare State da Europa ocidental.
No Brasil, a “cidadania fordista” – ou o processo de “constitucionalização do trabalho tupiniquim” – aconteceu durante a chamada “era Vargas”. São muitas e diversificadas (modernização conservadora, revolução passiva etc.) as polêmicas interpretativas a respeito. Não é o caso de enveredar no tema. No entanto, é mais ou menos assente que Vargas, após assumir o Estado em 1930, trouxe a figura do trabalhador (mesmo que de maneira subordinada) ao proscênio da aliança de classes.
A grande expressão deste processo – a verdadeira constitucionalização dos direitos do trabalho no Brasil -, sem dúvida, é a edição da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), em 1943.
A partir daí, o nosso trabalhador deixou de ser simplesmente o “caso de polícia” da República Velha. Ao contrário, em uma larga viragem histórica, transformou-se em um ator político decisivo de nosso desenvolvimento. Doravante, o trabalhador brasileiro ultrapassou a condição de mero fator de produção. Assumiu – ou foi, na nota dominante, assumido pelo alto, paternalisticamente – à condição de cidadão.
Pois bem, a loucura da proposta de reforma trabalhista do Temer prevê exatamente um fim no processo de constitucionalização do trabalho no Brasil. É gravíssimo! É isso que Rodrigo Maia, presidente da Câmara, pretende por em votação nesta quarta-feira (26/04). Para ter uma ideia da abrangência da proposta de reforma trabalhista, ela pretende a flexibilização de direitos assegurados aos trabalhadores no artigo 7º da Constituição Federal, que abrange um conjunto de 34 itens, e mais de 100 artigos da CLT, desde que mediante o eufemismo de “negociações coletivas”. A ideia é listar tudo o que pode ser negociado para evitar que os acordos que vierem a ser firmados por sindicatos e empresas após a mudança nas regras possam ser derrubados pelos juízes do trabalho, cuja importância de arbitragem vai diminuir exponencialmente.
Fazem parte dessa lista os direitos que a própria Constituição já permite flexibilizar em acordos coletivos, como jornada de trabalho (oito horas diárias e 44 semanais), jornada de seis horas para trabalho ininterrupto, banco de horas, redução de salário, participação nos lucros e resultados e aqueles que a Carta Magna trata apenas de forma geral e foram regulamentados na CLT. Estão ameaçados neste grupo, as férias, 13º salário, adicional noturno e de insalubridade, salário-mínimo, licença-paternidade, auxílio-creche, descanso semanal remunerado e FGTS, entre dezenas de outros itens.
Na prática, tudo o que estiver na CLT poderá ser alvo de uma negociação, compondo um inferno dantesco aonde o gume aguçado da guilhotina dos patrões cortará ao meio o pescoço dos trabalhadores. Somado ao projeto de terceirização, recém-aprovado, e à reforma da previdência, em definitivo, o trabalho será desconstitucionalizado no Brasil. O Brasil se transformará, de fato e de direito, em um paraíso do capital. Cruzaremos, assim, em combinação explosiva, a rota do apartheid e da escravidão remunerada.
Dessa maneira, torna-se imprescindível a nossa participação e união na greve geral no dia 28 de abril em defesa dos direitos dos trabalhadores de todo país.