A suspensão do Paraguai e a inclusão da Venezuela

Marcelo Zero demole os argumentos da imprensa dominante que defendem o afastamento de Fernando Lugo como “constitucional”. 

  1. Ao contrário do que alguns vêm afirmando, a deposição, em tempo recorde, do Presidente Fernando Lugo foi feita ao arrepio da ordem constitucional paraguaia. Com efeito, embora o artigo 225 da Carta Magna do Paraguai preveja a possibilidade do chamado “juízo político” do presidente, a forma como esse juízo foi realizado contraria frontalmente a ordem jurídica interna daquele país e a própria arquitetura internacional dos direitos humanos.
     
  2. De fato, a Constituição da República do Paraguai de 1992 afirma que o direito de defesa das pessoas é inviolável (artigo 16) e que toda pessoa tem a gara
    ntia dos direitos processuais, entre os quais se destacam os meios e prazos indispensáveis à preparação de sua defesa (artigo 17). 
     
  3. Ademais, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificada pelo Paraguai, dispõe que toda pessoa tem direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, para que se determinem seus direitos de qualquer natureza, incluindo o direito do acusado de dispor do tempo e dos meios adequados à preparação de sua defesa (artigo 8).
     
  4. Esclarecemos que, no Paraguai, a lei interna garante o amplo direito à defesa, com prazos condizentes, mesmo nos casos de meras infrações. No caso banal de multas de trânsito, por exemplo, os infratores dispõem de até 5 cinco dias úteis para apresentar a sua defesa. O presidente Lugo, em contraste, foi processado, julgado e sentenciado em cerca de 36 horas. 
     
  5. Há também o sério agravante de que o processo contra o presidente Fernando Lugo foi constituído com base em acusações vagas e sem a apresentação de uma única prova consistente.
     
  6. Portanto, não há dúvidas de que a deposição do presidente Fernando Lugo foi efetuada em desrespeito flagrante ao devido processo legal e ao direito à defesa, que se constituem em pedras angulares do Estado democrático de direito.
     
  7. Assim, a deposição do presidente Fernando Lugo representa clara ruptura da ordem democrática daquele país e grave afronta às consciências democráticas de todo o mundo. 
  8.  Esclarecemos, adicionalmente, que o Paraguai é uma república presidencialista. Por conseguinte, o poder do presidente está fundamentado, naquele país, diretamente no voto popular. No entanto, o “juízo político” a que foi submetido o presidente Fernando Lugo assemelhou-se à destituição de gabinetes que soem ocorrer em regimes parlamentaristas, nos quais o exercício do poder executivo está fundamentado no voto conferido aos membros do Legislativo. Não há dúvida, assim, de que o voto popular, fundamento último do poder numa democracia, foi clara e frontalmente desrespeitado da República do Paraguai.
     
  9. Também ao contrário do que alguns afirmam, a ruptura da ordem democrática no Paraguai não é apenas um assunto interno daquele país, estritamente circunscrito à sua soberania, mas sim uma grave anomalia institucional e política que afeta seriamente o processo de integração regional do Mercosul e da Unasul, bem como todas as democracias do subcontinente.
     
  10.  Com efeito, quase todas as nações da região estão empenhadas em processos de integração, particularmente o do MERCOSULe o da Unasul, que demandam compromissos democráticos de seus Membros. Na realidade, a integração regional nasceu da redemocratização da região, que possibilitou a aliança entre Brasil e Argentina, grandes rivais geopolíticos na época das ditaduras. Assim, a integração e a redemocratização são processos gêmeos, que se complementam e se reforçam mutuamente. Por isso, há neles cláusulas democráticas, como as que constam do Protocolo de Ushuaia e do Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo da Unasul sobre Compromisso com a Democracia, que preveem sanções severas, inclusive o fechamento das fronteiras, contra os Estados Partes que quebrem ou ameacem quebrar a ordem democrática. Do ponto de vista político, a integração regional, da qual o Brasil é grande beneficiário, tem como norte inequívoco o fortalecimento das democracias da região.
     
  11.  A República do Paraguai, no livre exercício de sua soberania, assinou e ratificou o Protocolo de Ushuaia, firmado no âmbito do Mercosul, o qual prevê, em seu artigo 5, sanções severas, entre as quais está incluída a suspensão do bloco, àqueles Membros que promoverem rupturas da ordem democrática. Da mesma forma, o Paraguai soberanamente ratificou o Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo da Unasul sobre Compromisso com a Democracia, o qual também prevê, em seu artigo 4, a aplicação de sanções, que incluem a suspensão dos direitos e prerrogativas assegurados no referido tratado, aos Estados Partes que pratiquem ou ameacem praticar rupturas da ordem democrática. A República do Paraguai não pode fugir desses compromissos internacionais assumidos ante as democracias da região. País soberano é país responsável e responsabilizável.
     
  12. Por conseguinte, os Chefes de Estado do Mercosul, alarmados com a criação desse precedente perigoso para as democracias do bloco e da região, tomaram a decisão legítima e adequada de suspender a República do Paraguai de seus direitos e obrigações políticas, no âmbito do bloco, até que sejam realizadas novas eleições naquele país.
     
  13. Foi, a bem da verdade, uma sanção bastante leve. Por iniciativa do Brasil, que teve uma conduta moderadora e ponderada ao longo de todo o episódio, o Paraguai não foi submetido a nenhuma sanção econômica que pudesse prejudicar a sua sofrida população. Também por iniciativa do Brasil, a Venezuela retirou a sua sanção de não vender mais petróleo ao Paraguai.
     
  14. Não acreditamos que a suspensão do Paraguai venha a prejudicar, no longo prazo, os interesses do bloco e do Brasil. O Paraguai sabe bem que é grande beneficiário do Mercosul e da economia brasileira, constituindo-se no país que mais recebe investimentos do Focem. Uma eventual saída do Paraguai do Mercosul, para apostar numa integração ainda mais assimétrica com os EUA, não convém a ninguém. Com a realização de novas eleições, previstas para abril de 2013, a suspensão ficará extinta e o Paraguai voltará ao Mercosul para perseguir um destino comum de crescimento econômico, inclusão social e irreversível amadurecimento democrático.
     
  15. Em relação à decisão dos Chefes de Estado de incorporar a Venezuela ao Mercosul como Membro Pleno, em virtude da suspensão do Paraguai, é necessário considerar, em primeiro lugar, que o Protocolo de Adesão da Venezuela ao Mercosul foi firmado, por todos os presidentes do bloco, inclusive pelo presidente paraguaio da época, Nicanor Duarte Frutos, em 04/07/2006, há exatos seis anos.
     
  16.  Assim, a Venezuela espera pacientemente há seis anos pela sua incorporação ao Mercosul. Nesse interregno, todos os poderes legislativos dos Estados Partes, inclusive o do Brasil, já se posicionaram pela entrada da Venezuela ao Mercosul. Restava apenas a resistência obstinada do Senado paraguaio que, por motivos insondáveis, não votava, favoravelmente ou desfavoravelmente, à incorporação da Venezuela.
     
  17. Em segundo lugar, deve-se afirmar que a inclusão da Venezuela no Mercosul é, sob a ótica dos interesses brasileiros, apenas a culminação de um longo processo de adensamento das relações bilaterais Brasil/Venezuela iniciado no governo Itamar Franco, consolidado no governo Fernando Henrique Cardoso e concluído na administração de Luiz Inácio Lula da Silva. Portanto, a adesão da Venezuela ao Mercosul não tem nada de intempestivo e tampouco resulta de uma decisão política sem substrato econômico, comercial e histórico.
     
  18. Em contraste com o pensamento de alguns, a incorporação da Venezuela ao Mercosul não é um plebiscito sobre o governo Chávez, mas sim um imperativo estratégico para o Brasil e o Mercosul. Especificamente em relação aos interesses do Brasil, acreditamos que a adesão da Venezuela ao Mercosul, além de ampliar o protagonismo internacional desse bloco econômico em foros estratégicos de negociação, aumentará as exportações de nossa indústria, gerando emprego e renda, criará fontes alternativas de energia, principal obstáculo ao nosso crescimento sustentado, e ensejará ações conjuntas mais significativas que visem ao desenvolvimento da região amazônica.
     
  19. No que tange especificamente aos aspectos jurídicos da decisão tomada na recente reunião do Mercosul em Mendoza, é preciso constatar que, de fato, o artigo 20 do Tratado de Assunção demanda que a aprovação das solicitações (de adesão ao bloco) será objeto de decisão unânime dos Estados Partes.
     
  20. No entanto, é necessário levar em consideração também que a República do Paraguai, por estar suspensa do Mercosul, não é, no momento, um Estado Parte do bloco. Poderá voltar a sê-lo, caso realize novas eleições limpas. Poderá, inclusive, jamais voltar a sê-lo, caso cumpra as ameaças de firmar acordos bilaterais de integração extrabloco. Seus direitos, inclusive seu direito de veto, estão suspensos. Isso possibilita, de forma legítima, a definitiva incorporação da Venezuela.
     
  21. Não se trata, portanto, de nenhum golpe.
     
  22. Também não é verdadeiro que houve “imposição” ou “pressão” do Brasil sobre o Uruguai para que esse país aprovasse a incorporação da Venezuela.
     
  23. O presidente Mujica, a quem cabe constitucionalmente as decisões sobre política externa, já se manifestou afirmando que concordou com a incorporação da Venezuela, em virtude dessa incorporação ser benéfica aos interesses soberanos do Uruguai. A decisão foi, assim, unânime e harmônica.
     
  24. As vozes eventualmente dissonantes do Chanceler Luis Almagro e, principalmente, do vice-presidente Danilo Astori, refletem as dissensões internas do Frente Amplio, mas não têm o condão de tisnar a legitimidade da decisão tomada. 
     
  25. O presidente Mujica também já se manifestou afirmando que a decisão do Uruguai é “firme e irreversível”. 
     
  26. Na realidade, todos, inclusive ao Paraguai, vão se beneficiar com a entrada da Venezuela no Mercosul.

    (Marcelo Zero é assessor técnico da Liderança do PT) 

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