As conclusões da Polícia Civil do Paraná sobre o assassinato de Marcelo Arruda, o guarda municipal e dirigente do Partido dos Trabalhadores em Foz do Iguaçu (PR), na sua festa de aniversário de 50 anos, por um policial penal bolsonarista, levantaram um grande debate no meio jurídico, na imprensa e nas redes sociais.
O relatório concluiu pelo cometimento de homicídio qualificado por motivo torpe e por causar perigo comum. O motivo torpe é aquele considerado como desprezível, imoral, vergonhoso, como por preconceito. O crime de perigo comum decorre do fato de ter o autor do crime submetido várias pessoas presentes a risco. Na prática a pena passa de 6 a 20 anos para 12 a 30 anos de reclusão, pelo art. 121, § 2º, do Código Penal.
Do ponto de vista do enquadramento jurídico-penal não há reparos ao relatório. A questão, contudo, acabou se fixando na fala da delegada Camila Cecconello, que buscou justificar o cometimento do homicídio a uma reação de Jorge José da Rocha Guaranho à ação de Marcelo Arruda de atirar barro e pedras em seu carro na primeira vez em que esteve na festa. Fatos obtidos a partir do depoimento da esposa do atirador.
A espantosa conclusão, expressa em entrevista coletiva da Polícia Civil do Paraná na manhã da sexta-feira (15), foi de que não houve crime de ódio ou por motivação política, em verdadeiro malabarismo narrativo justificador do injustificável.
“Para você enquadrar num crime político, na lei de crimes contra o Estado Democrático de Direito, você tem alguns requisitos, como impedir ou dificultar uma pessoa de exercer seus direitos políticos. Então, é complicado a gente dizer que foi motivado, ou que esse homicídio ocorreu porque o autor queria impedir o exercício dos direitos políticos daquela vítima. A gente analisa que, quando ele chegou ao local, ele não tinha essa intenção de efetuar os disparos, ele tinha a intenção de provocar. É muito difícil analisar os autos, com as provas que nós temos, e dizer que o autor foi até lá, voltou porque queria cessar os direitos políticos ou atentar contra os direitos políticos daquela pessoa. Parece, muitas vezes, mais uma coisa que acabou virando pessoal entre duas pessoas que discutiram, claro, por motivações políticas.”
Propositadamente, a delegada adotou uma argumentação desviante, haja vista que a Lei 14.197/21 trata de crimes cometidos contra o Estado Democrático de Direito. Versa sobre crime político, quando o debate real é sobre motivação do homicídio. Coisas distintas.
De todo modo, é espantoso que uma delegada de polícia considere que um homicídio não impede nem dificulta que um cidadão exerça seus direitos políticos. Estando morto, como será que os exercerá? E que, diante de uma cena evidente, filmada e divulgada amplamente, de um cidadão que entra em uma festa com arma em punho atirando, apesar dos gritos e apelos da esposa da vítima, “não tinha a intenção de efetuar os disparos”.
Evidentemente o crime foi cometido por motivação política. É um acinte à inteligência coletiva afirmar o contrário, inclusive quando o próprio relatório e o depoimento de todas as testemunhas atestam que autor e vítima não se conheciam e que houve uma invasão da festa temática por duas vezes pelo assassino, com o desfecho trágico.
Mas, se de todo modo o crime será considerado homicídio qualificado, por que isso virou uma questão? E de onde a Polícia Civil extraiu a qualificadora de motivo torpe se concluiu que se tratou de desavença pessoal?
A resposta para a primeira pergunta é simples. Pelo mesmo motivo que, durante os primeiros dias de investigação do assassinato do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, ainda com informações preliminares, a Polícia Federal afirmou, em nota, que os executores agiram sozinhos, que não houve um mandante por trás do crime.
Os homicídios possuem em comum o discurso de ódio estimulador de violência proferido pelo Presidente da República e seus seguidores. Ambos geraram desgaste ao governo. A desqualificação de mando no caso de Bruno e Dom e de motivação política no caso de Marcelo portam a evidente intenção de proteger Bolsonaro, mudar a narrativa e tentar fazer cessar a sangria.
Importa registrar, a propósito do caminho para a conclusão inusitada de crime por desavença pessoal, que o inquérito desrespeitou prerrogativas dos advogados da família de Marcelo Arruda, deixando a delegada de responder a requerimentos de diligências protocolados, sendo fornecidas parciais informações apenas após decisão judicial.
A resposta para a segunda pergunta é, provavelmente, o maior ato falho da delegada Camila Cecconello. Em resposta a uma repórter, ela informou que a qualificação por motivo torpe está ligada à “discussão por motivo vil”. Ocorre que a discussão que menciona foi sobre preferências políticas.
Sem perceber, a própria delegada forneceu o fundamento que contradiz sua conclusão. Se o “motivo vil” que dá ensejo a qualificar o homicídio foi a discussão, que se deu sobre divergência política, o motivo torpe, portanto, é a motivação política.
Cabe agora ao Ministério Público proceder ao enquadramento jurídico-penal no oferecimento da denúncia, sem descuidar de afirmar a óbvia motivação política que justifica a torpeza do assassinato brutal de um servidor público em sua festa de aniversário, diante de sua família e amigos.
Um crime que infelizmente se torna cada vez mais comum em tempos de ódio, armas e intolerância.
Tânia Oliveira é advogada, historiadora e pesquisadora. Membra do Grupo Candango de Criminologia da UnB (GCcrim/Unb) e da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)
Artigo publicado originalmente no