Abuso de autoridade: o foco tem que ser os mais frágeis, não as corporações que querem estar acima da lei

Abuso de autoridade: o foco tem que ser os mais frágeis, não as corporações que querem estar acima da lei

Cyntia Campos

1º de dezembro de 2016 | 18h13

 

Fotos: Alessandro Dantas Apenas no ano de 2015, o Conselho Nacional de Justiça catalogou 21 mil casos de abuso de autoridade. Considerando-se — por motivos óbvios — o baixo índice de queixas dessa prática levadas a cabo pelas vítimas, o número dá uma ideia da necessidade e da urgência de uma legislação que puna esse tipo de irregularidade praticada por agentes públicos dos diversos escalões.

Nesta quinta-feira (1), o Senado realizou uma sessão temática para debater o PLS 280/2016, que trata dessa questão, estabelecendo as condutas que serão classificadas como abuso e as punições para cada uma delas. Os senadores Lindbergh Farias (PT-RJ), líder da Oposição, e Humberto Costa (PE), líder da Bancada do PT, participaram da discussão que teve como debatedores os juízes federais Sérgio Moro e Sílvio da Rocha, o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes e o relator da matéria, senador Roberto Requião (PMDB-PR).

 

Castas acima da lei?

A principal divergência é em torno da abrangência do projeto: juízes e membros do Ministério Público devem estar entre os agentes públicos passíveis de punição por abuso de autoridade? O juiz Sérgio Moro, por exemplo, acha que não e alega que o projeto, redigido há sete anos, tem como objetivo “atacar a Operação Lava Jato”.

“Ninguém pode estar acima da lei”, rebateu Lindbergh, para quem a necessidade de amparar o cidadão comum diante de abusos de agentes do estado não pode esperar, especialmente quando se sabe como são conduzidas, por exemplo, operações policiais em bairros pobres, com o clássico “pé na porta”. Quem sofre na pele com essas irregularidades não são os figurões, mas, principalmente, as pessoas mais pobres e desassistidas.

“Um Congresso intimidado não é bom para a democracia”, ressalta Humberto Costa, que rejeita a hipótese de interditar o debate sobre um tema que assombra todos os dias os cidadãos mais frágeis e desassistidos sob a pressão de corporações do serviço público, sejam elas quais forem. Ele aponta que regras claras que coíbam abusos contribuem para dar mais representatividade e legitimidade a qualquer ação de combate à corrupção, seja a Lava Jato ou outras operações.

 

Sem Fla x Flu

O projeto de lei (PLS 280/2016) que define o abuso de autoridade foi elaborado há sete anos pelos juristas que integraram a Comissão da Consolidação da Legislação Federal e da Regulamentação da Constituição, instituída pelo Senado em 2009. Entre os integrantes do colegiado estavam o então desembargador Rui Stoco, o hoje ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki, e pelo ex-secretário da Receita Federal no governo FHC Everardo Maciel. A proposta pretende substituir a atual legislação sobre o tema, a Lei 4.989, de 1965, editada durante o regime militar, que é considerada falha por não definir com clareza as condutas delituosas e os tipos penais.

Antes que se instaure o Fla x Flu, os senadores petistas defendem que o debate sobre o PLS 280 leve em conta a realidade brasileira como um todo, e não uma circunstância específica. “A discussão tem que ser sobre como construir uma lei sobre abuso de autoridade que não atrapalhe investigações. É nisso que nós temos de nos deter”, resume Lindbergh. Ele lembra que foi nos governos petistas que instrumentos essenciais ao combate à corrupção foram criados — a Lei de Organizações Criminosas, a Lei de Transparência, a Lei de Acesso à Informação, a criação da CGU, só para citar alguns. Instrumentos que são perenes e não pertencem a governos, mas ao estado e à cidadania.

Humberto enfatiza que o texto final que saia desse debate não pode conter conceitos vagos que interfiram no direito do juiz de julgar e de interpretar a lei, como corretamente reivindicam os magistrados. Por outro lado, é preciso que determinações legais objetivas sejam respeitadas e não “interpretadas”. Um prazo, por exemplo: se a lei diz que é de 10 dias, não há o que interpretar. “Se a lei diz que a condução coercitiva só deve acontecer quando há uma prévia convocação e não há o comparecimento daquele indicado, não há o que interpretar”, alfinetou o líder petista, lembrando a condução coercitiva do ex-presidente Lula, que jamais deixou de comparecer a juízo quando convocado.

 

Justiça sem espetáculo

Esse tipo de “interpretação” serve muito menos à Justiça que ao espetáculo, lembra Humberto. “Como reparar o dano resultante de um ato dessa natureza contra quem vive de sua credibilidade?”. Humberto foi vítima de manobra dessa ordem. Em 2006, quando disputava o cargo de governador de Pernambuco, a Polícia Federal e o Ministério Público ressuscitaram uma denúncia feita pelo próprio Humberto, dois anos antes, e o transformaram de denunciante em investigado, a apenas uma semana da eleição.

Três anos depois, julgado pelo TRF, Humberto foi absolvido por unanimidade, a pedido do Ministério Público. Humberto e Lindbergh criticaram a generalização de medidas de exceção, o uso abusivo de prisões preventivas para forçar delação, o uso abusivo de interceptações telefônicas, seletividade, vazamentos e a relativização de direitos e garantias individuais.

Lindbergh ressaltou que “não deixa de ser interessante” a presença de Sérgio Moro, o juiz responsável pela operação, em um debate sobre abuso de autoridade, lembrando situações como a condução coercitiva do ex-presidente Lula e a divulgação de grampo com um diálogo entre Lula e a presidenta Dilma Rousseff, ainda no exercício do cargo. Ambas as ações foram duramente criticadas por ministros do STF encarregados de analisar sua legalidade.

 

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