Dia Mundial da Água

Acesso universal à água requer novo modelo de desenvolvimento

Distribuição desigual, desperdício, falta de políticas públicas. O cenário do abastecimento de água no mundo desafia conceitos humanistas sobre segurança hídrica, aponta debate da CMA neste Dia Mundial da Água
Acesso universal à água requer novo modelo de desenvolvimento

Foto: Alessandro Dantas

A Terra possui 1,38 bilhão de km3 de água. Mas só 2,5% disso é doce ou tem grau de salinidade inferior a 1%, e por isso pode ser consumida pelo ser humano. Aliás, poderia, porque parte substancial, 1,8%, está congelada na Antártica, no Ártico e nos glaciares. Feita a equação, restam para abastecer a humanidade 0,7% da água doce existente, ou 10,7 milhões de km3. E o que temos feito com isso? Como explicou Leonardo Boff em audiência pública nesta quarta-feira (23), na Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado, cerca de 60% dessa água é consumida por apenas 9 países, enquanto populações de outras 80 nações, cerca de 3 bilhões de pessoas, enfrentam grave escassez de água. “Outros 2 bilhões de humanos convivem com água sem tratamento adequado, o que responde por muitas doenças”.

O teólogo, escritor, filósofo e professor foi um dos convidados do debate sobre segurança hídrica e mudanças climáticas, em celebração ao Dia Mundial da Água (22 de março). O Brasil, destacou Boff, tem 13% de toda a água potável do Planeta. Mas, como no mundo, ela é distribuída de forma desigual. A Região Nordeste, a menos abastecida, utiliza apenas 3% do recurso natural disponível.

Nessa porção do país, um trabalho de mais de duas décadas feito pela Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) trouxe resultados animadores. A partir de 2003, em parceria com governo federal e organizações de base, a ASA fez parte do “maior programa de acesso à água no mundo”, nas palavras de sua coordenadora, Valquíria Alves Smith Lima.

“Alcançamos mais de 1,2 milhão de famílias com cisternas de captação de água das chuvas para o sustento humano no semiárido nordestino. Outras 170 mil famílias contam com sistema de armazenamento dessas águas para a produção de alimentos”, contabiliza. Atendimento a escolas rurais e estímulo à produção de bancos de sementes também fazem parte da atuação da ASA, que lamenta a interrupção do programa. “As ações sofrem um grande impacto, porque as vontades políticas mudam, e elas infelizmente não são estruturantes. Para mudar a realidade e apoiar as famílias mais vulneráveis, as ações precisam ser estruturantes”, recomendou a estudiosa.

Cultura da água

Descontinuidade de programas sociais não é o único problema. Segundo Leonardo Boff, desperdiçamos cerca de 40% da água tratada. “Com essa água desperdiçada daria para atender toda a Suíça, toda a Bélgica, parte da França e todo o norte da Itália. Lavamos o carro, lavamos a rua, deixamos canos estourados por meses inteiros”. O que ele classifica como “falta de cultura de água” envolve ainda saneamento precário, serviço caro e um ciclo nocivo. “Esgotos não tratados, uso de detergentes não biodegradáveis, emprego abusivo de agrotóxicos que contaminam rios e lençóis freáticos, efluentes industriais despejados sem tratamento nos cursos d’água, lixo jogado nos córregos ou carregados pela enxurrada devolvem aos rios envenenamento e morte, comprometendo a frágil e complexa cadeia de reprodução da vida”, alerta Boff, que falou em nome da Iniciativa Internacional da Carta da Terra.

Não resta dúvida de que a atividade humana tem forte impacto sobre a degradação do meio ambiente e a falta d’água. E a opção pelo modelo atual de desenvolvimento é responsável pelos desastres sentidos a partir das mudanças climáticas.

A análise, compartilhada por Leonardo Boff e Valquíria Alves Smith Lima, foi reforçada pelo presidente da CMA, senador Jaques Wagner (PT-BA), para quem “a humanidade vive uma crise civilizatória, em que ter é mais importante do que ser”. Na opinião do senador, “se não conseguirmos dar um freio no jeito como a humanidade lida com sua casa maior, os que estão chegando não sei como ficarão no planeta Terra”.

Direito fundamental

A solução não deve sair do modelo de desenvolvimento existente, concordam, de novo, Boff e Valquíria. Defensores da tese de que segurança hídrica significa empatia e de que água é um direito fundamental, e não uma mercadoria, ambos reconhecem que o avanço do capital sobre esse bem é cada vez maior. “O megainvestidor Soros comprou grandes territórios na Amazônia e admitiu que vai ganhar milhões de dólares distribuindo água pelo mundo”, afirmou Boff.

De fato, estudos multidisciplinares indicam que, por ano, cerca de meio trilhão de m3 de água potável são negociados, por meio do comércio de terras, entre empresas e países. A preocupação com a água subterrânea, dos aquíferos, foi citada pelo diretor interino da Agência Nacional de Águas (ANA), Rogério de Abreu Menescal, que defendeu maior integração e articulação entre as esferas de poder para melhorar a gestão dos recursos hídricos no país. Um dos maiores desafios é a governança das águas subterrâneas, admitiu. A propósito, Rogério Menescal revelou que relatório divulgado nesta terça (22) pelas Nações Unidas em Dakar, no Senegal, aponta a tendência mundial de exploração maior de reservatórios subterrâneos de água em razão dos efeitos das mudanças climáticas.

Se embaixo da terra a água “encarece”, na superfície ela é cada vez menos confiável. Como ressaltou Jaques Wagner, recente estudo da Universidade Federal do Oeste do Paraná, em parceria com a Fiocruz, identificou que, na região da Bacia do Tapajós, 75% das pessoas examinadas estavam com taxas de contaminação acima do tolerado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), “e a principal contaminação é oriunda dos garimpos ilegais no Amazonas e no Pará”. Para ele, é preciso mudar o modelo de desenvolvimento. “A roupa bonita que a gente veste com o tempo gasta. E estamos numa situação limite”, concluiu o senador.

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