A explosão popular no Chile surpreendeu muita gente, mas é compreensível diante da realidade econômica e social, para além do aparente sucesso vendido nos últimos anos. “Isso é só a ponta do iceberg. Produziu uma situação muito volátil, que todos estavam ignorando”, constata a analista política e pesquisadora Mara Lagos, citada em artigo de Benedict Mander, correspondente do Financial Times em Buenos Aires, publicado no Valor Econômico. “Grande parte da população chilena sente que foi deixada para trás”, disse a analista.
Uma semana antes dos protestos, e também de tratar o povo chileno como “inimigo”, o próprio presidente Sebastián Piñera afirmou que era preciso um esforço “para incluir todos os chilenos”. A situação de exclusão social a qual se refere Piñera data da ditadura de Augusto Pinochet, nos anos 80, quando foi implantada no Chile a primeira experiência neoliberal do continente. O laboratório incluiu a privatização de serviços públicos, o que dificultou gradativamente o acesso da população à saúde, educação, transporte, moradia, energia, luz e até água.
A isso, somou-se a reforma da Previdência Social, com a adoção do sistema de capitalização naquele país. A privatização do sistema de proteção social empurrou milhares de idosos para a miséria. Atualmente, 80% das aposentadorias são menores que o salário mínimo, enquanto 44% das pessoas estão vivendo abaixo da linha da pobreza. Os idosos totalizam 16% da população chilena, de acordo com o Censo de 2017, cerca de 2,8 milhões de pessoas. Uma parte da população continua trabalhando para se manter e, em muitos casos, as próprias famílias. O número de suicídios de casais de idosos torna a situação ainda mais dramática.
Na outra ponta do processo estão as administradoras de fundos de pensão, vinculadas a grandes conglomerados financeiros nacionais e internacionais. “Esses grupos manejam um monte de recursos da economia de forma direta ou indireta, também com poder no exterior”, explica o professor chileno Andras Uthoff. Em 2018, ele já advertia que a sociedade estava reagindo à exploração do sistema financeiro, citando manifestação de um milhão de pessoas, convocadas pela No+AFP (sigla da organização que combate as administradoras de fundos de pensão).
Para além da propaganda neoliberal, que vende o país como “exemplo de sucesso econômico”, o Chile é o sétimo país mais desigual do mundo em um ranking de 264 países, segundo dados do Banco Mundial, divulgados em 2017. Também segundo o estudo “Desiguales”, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Chile é o país mais desigual entre os integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o sétimo em desigualdade na América Latina. Atualmente, 1% da população concentra 33% da riqueza. E 0,1% detém 19,5% do que o país gera.
Tão logo ganhou a eleição, Jair Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes trataram de vender ao Brasil o modelo chileno de capitalização para a Previdência Social. “Isso é algo que a equipe sempre defendeu, um regime de capitalização que permita que a sociedade brasileira possa se equiparar, talvez em 7 ou 8 anos, ao Chile, por exemplo”, disse o então ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. “O Chile, com seu regime de capitalização, sustenta o crescimento chileno”, alardeava o ministro. Apesar de objeto do desejo do governo e do rentismo, a proposta de capitalização foi derrotada na reforma da Previdência.
Frente à resistência que cresce em toda a América Latina, o neoliberalismo tenta preparar nova contra-ofensiva, para não perder os dedos, com o mote do combate à desigualdade. Em agosto, a Business Roundtable, que reúne 181 CEOs das maiores empresas do mundo, revisou sua histórica posição.
Antes voltada para a maximização dos lucros dos acionistas, agora defende que empresas devem beneficiar a todos – “clientes, funcionários, fornecedores, comunidades e acionistas”. “Mesmo economistas mais liberais já admitem incorporar a política social na formulação de políticas econômicas”, disse recentemente Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central.
“Tomado como modelo, o Chile serviu de referência para a construção desse modelo da reforma da Previdência que nós discutimos”, alerta o senador Rogério Carvalho (PT-SE). “Ao longo de 10 anos, serão R$ 800 bilhões retirados do consumo, da atividade econômica, dinheiro que vai faltar na vida das pessoas”, denuncia o senador petista, comparando a situação brasileira com a dura realidade chilena.
A revolta no Chile, no entanto, é um sinal da resistência dos povos da região, antecedido pelas manifestações no Equador e confirmado pela vitoriosa eleição de Evo Morales na Bolívia e, provavelmente, de Alberto Fernandez na Argentina, neste próximo domingo.