Com a decisão do TRF-4, o golpe cruzou o Rubicão da democracia. Agora é oficial e nítido: não vivemos mais num regime democrático. Estamos num regime de aparência formal democrática, porém tutelado por um poder jurídico-midiático-repressivo que, sem nenhum voto, controla com mão de ferro os destinos do país. É regime de exceção. Regime que atropela os direitos mais comezinhos, em nome da continuidade da agenda ultrarregressiva do golpe. Direitos individuais, com os de Lula, e direitos coletivos, como os dos trabalhadores.
O voto do “desembargador doido”, um primor de raciocínio falacioso que faria corar o próprio Górgias, foi além de Moro e afirmou que Lula pode ser condenado não somente sem provas, mas também sem indícios. Entrará para a História como o voto Ionesco, tão surreal quanto, porém muito mal escrito.
Esse samba do “desembargador doido”, que não tem o menor sentido lógico e jurídico, possui, no entanto, um objetivo preciso e bem calculado: transformar as próximas eleições num samba de uma nota só, neoliberal e democraticamente dissonante. Sem Lula, qualquer outro candidato minimamente competitivo defenderá a agenda do golpe. Essa é a terceira etapa do golpe. A etapa do não-retorno, da inevitabilidade da agenda ultraneoliberal.
O golpe vai até o fim. Até o fim da democracia. Até o fim das aparências. Até o fim da vergonha. O golpe não veio para brincar, veio para destruir. Sem tanques, mas com as espadas ensanguentadas das plumas jurídicas sem votos, como diria um Edward Bulwer-Lytton abastardado.
Como chegamos a este ponto? Sobretudo, faltou às esquerdas uma compreensão cabal do que estava se armando desde 2013. Uma apreensão analítica do quadro geopolítico que se desenhava desde a crise de 2008, e do papel do Brasil nesse quadro. Como diria Hegel, a coruja, símbolo grego da sabedoria, só levanta voo ao anoitecer.
Vivemos uma segunda grande onda neoliberal na região, que se segue à derrubada ou tentativas de derrubada, por diversos meios, de regimes populares e progressistas que, em maior ou menor grau, fizeram avanços sociais de relevo.
Essa segunda onda neoliberal é, ao mesmo tempo, semelhante e diferente da primeira onda neoliberal, que acometeu a região, nos anos 1990.
Ela é semelhante nas finalidades e objetivos. Afinal, a ortodoxia carece de imaginação. Propõe sempre as mesmas medidas fracassadas: contração dos investimentos e gastos públicos, desmonte do Estado de Bem Estar, redução dos direitos dos trabalhadores, abertura maior da economia, extinção dos mecanismos estatais de intervenção na economia, venda de patrimônio público, privatização de serviços públicos, etc..
Mas ela é diferente nas circunstâncias em que se desenvolve e nos meios pelos quais opera. A primeira onda neoliberal na região ocorreu num contexto de forte hegemonia política e ideológica mundial das teses neoliberais, crise do socialismo real, afirmação de uma única superpotência potência capitalista (EUA), geração de uma ordem mundial unipolar, conjuntura econômica internacional favorável, boa disponibilidade de capital externo e avanços democráticos nos países latino-americanos.
No caso do Brasil e de alguns outros países da região, essa primeira onda neoliberal não comprometeu, de forma significativa, a proteção trabalhista e o incipiente Estado de Bem Estar. Especificamente em nosso país, não houve grandes reformas trabalhistas e previdenciárias regressivas. Tampouco ocorreu a geração de um estado de Exceção que promovesse, ou tentasse promover, repressão sistemática à oposição e aos trabalhadores, à margem dos direitos constitucionais, embora tenham acontecido, sim, graves episódios de violência lamentáveis contra movimentos sociais, como o MST. Não houve perseguição judicial sistemática contra políticos e candidatos da oposição. Tampouco um golpe de Estado.
Na realidade, essa primeira onda neoliberal, no caso do Brasil, centrou-se mais na venda de estatais e de patrimônio público, na privatização de serviços públicos, na abertura incondicional da economia, na implantação de políticas macroeconômicas ortodoxas sintonizadas com as diretrizes do FMI e na geração de política externas e de defesa que orbitavam em torno dos interesses estratégicos da grande superpotência mundial e de seus aliados.
Muito embora essa primeira onda neoliberal tenha prejudicado agudamente os interesses de algumas parcelas da população (trabalhadores de estatais, funcionários públicos, empresários e trabalhadores dos setores econômicos que foram varridos pela abertura da economia e pelo câmbio supervalorizado etc.), os dados estatísticos não mostram uma regressão social substantiva (friso o substantiva) para o grosso da população, em relação ao quadro dantesco pré-existente, a não ser nos períodos conjunturais das crises econômicas recorrentes que se verificaram naquele período.
Entretanto, a segunda onda neoliberal ocorre num contexto internacional, regional e nacional inteiramente diverso.
Em primeiro lugar, a economia mundial passa pela segunda crise mais importante da sua história, inferior apenas à Grande Depressão iniciada em 1929. Trata-se de crise ampla, profunda e de longa duração. Iniciada em 2008, ela ainda não dá sinais de ter sido realmente superada. É uma crise estrutural que, ao contrário das crises periféricas dos anos 1990, que tinham denominações geográficas, afetou e afeta as economias centrais do sistema capitalista. Essa grande crise levou a um grande acirramento dos conflitos distributivos e a uma crise dos sistemas de representação, que compromete seriamente o funcionamento das democracias.
Em segundo lugar, a segunda onda neoliberal na América Latina ocorre num momento em que a hegemonia ideológica e política do neoliberalismo é amplamente questionada nas economias centrais do sistema. Com efeito, as políticas econômicas liberais e austericidas não têm conseguido retomar o crescimento de forma sustentável e reduzir, de forma significativa, as taxas de desemprego e a precarização do mercado de trabalho. Ao contrário, tais políticas têm acirrado as desigualdades, aumentado a precarização do trabalho, erodido o Estado do Bem Estar e os direitos trabalhistas e previdenciários. Mesmo entre a direita dos países avançados, não há mais o antigo consenso de que a “globalização” e a abertura das economias é algo inevitável e benéfico. Os fenômenos Trump, Le Pen e Brexit indicam o renascimento dos nacionalismos de direita, invariavelmente racistas e anti-imigrantes.
Em terceiro lugar, não há mais, no cenário internacional, a hegemonia inconteste da única superpotência do planeta. No início deste século, ocorreram profundas mudanças geoeconômicas e geopolíticas que colocam em xeque a ordem mundial unipolar que havia sido estabelecida nos anos 1990. A meteórica ascensão da China, a recuperação da Rússia, a emergência do Brasil e da Índia, o maior dinamismo econômico dos países em desenvolvimento, a articulação do BRICS, a transformação do G8 em G20, os progressos feitos na articulação regional latino-americana, a concatenação dos interesses dos países emergentes na OMC e em outros foros etc. criaram uma ordem internacional multipolar e menos assimétrica.
Em quarto lugar, a segunda grande onda neoliberal ocorre após a verificação de progressos sociais substantivos em muitos países da América Latina. No Brasil, por exemplo, houve significativa distribuição de renda, queda nas desigualdades, redução da pobreza, eliminação da fome, incremento do emprego formal, aumento dos salários e rendimentos, ampliação das oportunidades, ampliação do crédito, etc.
Nessas circunstâncias distintas, a segunda onda neoliberal, para se firmar, precisa:
- Instaurar uma “democracia tutelada”, que reprima duramente lideranças políticas de esquerda e movimentos sociais e trabalhistas que possam opor resistência significativa ao golpe. Os direitos civis e políticos necessitam ser “relativizados.”
- Desconstruir o Estado de Bem-Estar consagrado na Constituição de 1988 e os direitos trabalhistas inscritos na golpeada CLT. Os direitos sociais e econômicos necessitam ser inteiramente “revistos”.
- Destruir os avanços sociais e econômicos feitos no início deste século, de forma a recompor as taxas de lucro e abrir novas fronteiras para a expansão do capital, especialmente dos capitais especulativos internacionais.
- Alienar tudo o que resta do patrimônio público e erodir os mecanismos estatais de intervenção na economia.
- Restaurar a hegemonia ideológica do neoliberalismo e desconstruir toda a rica experiência social e econômica dos governos do PT, apresentando-a como um “desastre”.
- Retirar o Brasil do Sul geopolítico e recolocá-lo na órbita geoestratégica do Norte geopolítico. Isso implica desconstruir as antigas políticas externa e de defesa. BRICS e MERCOSUL, em especial, precisam ser abandonados, pelo menos em seus aspectos geoestratégicos.
Esse último ponto é o mais importante. O resto poderá vir como consequência. A crise colocou em rota de colisão as potências emergentes, de um lado, e os EUA e aliados, de outro. Esses últimos precisam recuperar e assegurar zonas de influência econômica e política para tentar manter uma hegemonia seriamente ameaçada. Ademais, dada à abundância de liquidez os mercados mundiais, o capital financeiro necessita desesperadamente de novas zonas de expansão.
Nesse jogo geoeconômico e geopolítico, o Brasil é peça central. Caindo ele, a tendência é que toda a região caia. Assim, o quintal voltará a ser quintal. Um quintal bastante lucrativo. Nada, da espionagem da NSA até a Lava Jato distorcida, passando pelas manifestações de 2013, aconteceu por acaso.
Assim, o golpe, além de ter cruzado o Rubicão da democracia, está cruzando outro Rubicão. Um gigantesco Rubicão geopolítico. Na realidade, um oceano. Os golpistas estão deslocando, em sentido metafórico, o Brasil do Atlântico Sul para o Atlântico Norte, contrariando nossos verdadeiros interesses nacionais. Com essa travessia, vêm os “rubicões” sociais e econômicos que nos fragilizam de forma estrutural, talvez irreversível.
Não reagimos a tempo. Não nos mobilizamos a tempo. Mas não é tarde.
A agenda do golpe é inviável. Além de provocar desigualdade e a volta da pobreza e da fome, não assegurará o desenvolvimento sustentado, para além dos voos de galinha.
Lula, vítima do ódio irracional dos golpistas, tem a chave para a reconciliação do país. Mesmo que arbitrariamente preso e interditado, continuará a ser a principal liderança política do Brasil. Continuará a liderar as pesquisas. Na verdade, sua figura se agigantará ainda mais. A resistência tende a crescer e o vexame internacional de uma condenação sem provas e indícios concretos tende a se agravar.
Ao contrário dos golpistas, presos a interesses estrangeiros e ao ódio político, Lula é um homem livre. Sempre o será. Mais cedo ou mais tarde, os brasileiros vão escolher se preferem viver num país democrático e soberano, governados por um homem livre, ou se preferem rastejar numa colônia administrada por prepostos de interesses alienígenas.
Alea jacta est.