A Aliança do Pacífico, o novo modismo do livre-cambismo regional, não passa, por conseguinte, de uma miragem paleoliberal.
Os conservadores brasileiros têm um novo fetiche: a Aliança do Pacífico. Trata-se um novo bloco econômico comercial que pretende agregar, numa área de livre comércio, Chile, Peru, Colômbia, México e Costa Rica.
Conforme as notícias que lemos na grande imprensa, a Aliança do Pacífico foi criada para servir de contrapeso ao Mercosul, um bloco de economias “estatizadas” e “pouco dinâmicas”, que rejeitam as benesses do livre-comércio. Ainda de acordo com nossos determinados paleoliberais, que persistem em suas crenças panglossianas mesmo após a crise do capitalismo desregulado, o futuro pertence à Aliança, ao passo que ao Mercosul caberia o atraso, a estagnação e o isolamento.
Bom, em primeiro lugar, é preciso observar que qualquer bloco econômico da América do Sul ou da América Latina que não inclua o Brasil não terá maior relevância regional. O Brasil é a sexta economia mundial e o Mercosul, em seu conjunto, já representa a quarta economia mundial, à frente de gigantes como Alemanha e Japão. Em contrapartida, o México, a grande economia da Aliança do Pacífico, é a décima quarta economia do mundo (dados de 2011) e a Aliança como um todo representaria a novena economia do planeta. Ademais, nenhum país da Aliança chega perto do peso demográfico, geográfico e geopolítico que o Brasil tem hoje no mundo.
Alguns argumentam que a Aliança exporta mais que o Mercosul. É verdade. Em razão das grandes exportações do México, fruto essencialmente da sua participação no NAFTA, esse bloco efetivamente exporta mais. Porém, esses defensores da Aliança não mencionam que a balança comercial do México é deficitária. Entre 2002 e 2011, segundo dados da ALADI, o México acumulou cerca de US$ 72 bilhões de déficit em sua balança comercial. Não é muito, se levarmos em consideração o volume da corrente de comércio mexicana, mas é algo significativo. Em contraste, o Brasil acumulou, no mesmo período, um superávit de US$ 303 bilhões, que muito contribuiu para a superação da vulnerabilidade externa de nossa economia.
Em segundo lugar, o Brasil e o Mercosul já têm livre comércio ou comércio bastante facilitado com todos os países da América do Sul que aderiram à Aliança do Pacífico. Em alguns casos, há muito tempo. O Chile, por exemplo, formalizou sua associação à área de livre comércio do Mercosul já em 1996, com a assinatura do Acordo de Complementação Econômica Mercosul-Chile (ACE Nº35). O Peru, por sua vez, aderiu à zona de livre comércio do Mercosul em 2003, com a assinatura do Acordo de Complementação Econômica Mercosul-Peru (ACE Nº 58/03). E a Colômbia, junto com Equador e Venezuela, tornou-se membro associado do Mercosul em 2004, mediante a assinatura do Acordo de Complementação Econômica Mercosul-Colômbia, Equador e Venezuela (ACE Nº 59/04).
Ou seja, todos esses países da Aliança, e mais todos os demais países da América do Sul (à exceção de Guina e Suriname), já fazem parte, em maior ou menor grau, da zona de livre comércio do Mercosul. A única grande diferença, em relação aos membros plenos do bloco (Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Venezuela), é que eles não fazem parte da união aduaneira do Mercosul e nem participam de suas instituições políticas.
Como resultado dessa integração, as exportações do Brasil para essas nações aumentaram exponencialmente. Para a Colômbia, as exportações brasileiras aumentaram de US$ 638 milhões, em 2002, para US$ 2,83 bilhões, em 2012. Em relação ao Peru, nossas exportações subiram de apenas US$ 438 milhões para US$ 2,4 bilhões, no mesmo período. No que tange ao Chile, as exportações brasileiras aumentaram de US$ 1,4 bilhão, em 2002, para US$ 5,4 bilhões, em 2011. Diga-se de passagem, o Brasil tem alentados superávits com todos esses países.
Além disso, esses países da América do Sul que participam da Aliança do Pacífico já têm, por forças desses acordos citados e dos acordos firmados no âmbito da Comunidade Andina, livre comércio entre si. Portanto, a única novidade da Aliança é a proposta de livre comércio entre esses países e o México. Nesse sentido, a Aliança do Pacífico nada mais é, pelo menos por enquanto, do que um acordo de livre comércio entre o México e alguns países remanescentes da Comunidade Andina, já que Equador, Bolívia e Venezuela não pretendem aderir. Não se pense, aliás, que a Aliança do Pacífico vai conseguir acesso facilitado ao mercado norte-americano. Qualquer acordo com os EUA terá de passar pelo crivo draconiano do Congresso norte-americano, que exigirá, dos países da Aliança, bem mais do que livre comércio.
Much ado about nothing, diria o dramaturgo de Stratford-upon-Avon.
Em relação ao México, o Brasil firmou o Acordo de Complementação Econômica nº 53, ainda em 2002. Tal acordo, embora menos ambicioso que os demais citados aqui, estabeleceu preferências tarifárias em cerca de 800 itens da pauta exportadora. Ademais, o Brasil e o México firmaram, também em 2002, o Acordo de Complementação Econômica nº 55/02, destinado unicamente a estabelecer um maior intercâmbio comercial de automóveis.
Por conseguinte, a Aliança do Pacífico não tem nenhum impacto significativo sobre a realidade econômico-comercial da América do Sul e América Latina. E nem sobre o Brasil e o Mercosul. A não ser que os demais países da região abandonem o Mercosul, coisa altamente improvável, ela não representa ameaça real ao Brasil e ao autêntico processo de integração. Seu impacto maior é apenas político-ideológico: ela representa simbolicamente a aposta estratégica e incondicional no livre-cambismo, como solução mágica para os problemas econômicos e sociais de nossa região. Com a crise do capitalismo desregulado, essa pauta já deveria estar definitivamente enterrada, mas, como a fênix, ela ressurge teimosamente das suas próprias cinzas para enganar os incautos.
Relativamente a esse assunto, é interessante cotejar a experiência recente do México com a do Brasil.
O México, além de aderir ao acordo inteiramente assimétrico do NAFTA, já em 1992, firmou nada menos que 32 acordos de livre comércio. Trata-se do país campeão em livre comércio, o que mais celebrou acordos desse tipo em todo o mundo.
Se os teóricos do livre-cambismo estivessem certos, o México seria a economia mais dinâmica e inovadora do mundo. Contudo, os resultados efetivos são, para dizer o mínimo, duvidosos.
Após um período inicial de euforia com os novos investimentos norte-americanos e com o grande aumento do seu comércio internacional, principalmente com a criação de empresas “maquiladoras” na fronteira com os EUA, os inevitáveis efeitos negativos da integração tão assimétrica com a maior economia mundial se tornaram cada vez mais evidentes.
No campo industrial, houve grande esfacelamento da estrutura produtiva nacional. Muitas empresas mexicanas não conseguiram sobreviver à concorrência da produção industrial dos EUA. E as que conseguiram foram, em boa parte, compradas a baixos preços por grupos econômicos norte-americanos. Isso aconteceu de modo especialmente intenso na outrora pujante indústria têxtil mexicana, que passou a orbitar a cadeia produtiva dos EUA.
Na área agrícola, houve a geração de notável insegurança alimentar. O México, que era exportador de grãos, no período pré-Nafta, passou a importá-los dos EUA em sua quase de totalidade. Tal processo de destruição das culturas agrícolas se deu inclusive no que tange ao milho, base da alimentação e culinária mexicanas. Hoje em dia, o milho utilizado no México é quase todo colhido nos EUA, que subsidia fortemente a sua produção. Embora a agricultura mais moderna e irrigada tenha sobrevivido, a agricultura familiar foi muito afetada.
Ademais, houve fragilização da proteção jurídica ao meio ambiente e “precarização” das relações trabalhistas, em virtude dos privilégios concedidos aos investidores norte-americanos, no capítulo sobre investimentos do Nafta.
A consequência mais relevante foi, contudo, o aumento das desigualdades regionais e sociais no México. Houve poucos “ganhadores” mexicanos com a integração aos EUA e com os demais acordos de livre comércio, concentrados principalmente no Norte do país. As demais regiões, principalmente a região Sul do México, e a grande massa dos trabalhadores urbanos e rurais mexicanos não se beneficiaram na mesma medida, como se esperava. Na realidade, ocorreu significativo incremento das assimetrias regionais e sociais, impulsionado pelos efeitos econômicos desagregadores e destruidores da integração aos EUA.
Estudo feito pelo Banco Mundial, em 2007, intitulado Lessons from NAFTA for Latin America and the Caribbean Countries: A Summary of Research Findings (lições do NAFTA para os países da América Latina e do Caribe: resumo das conclusões da pesquisa), mostrou cabalmente que os efeitos da inserção internacional do México, ao longo do Nafta, foram significativamente regressivos.
Ademais, a economia mexicana tornou-se ainda mais dependente da economia dos EUA, dependência que não foi revertida com assinatura dos demais acordos de livre comércio. Com a crise, que afetou profundamente a economia norte-americana, o México praticamente não cresceu, em 2008, e, em 2009, seu PIB caiu quase 7%.
Nos primeiros 10 anos deste século, o PIB per capita (PPP) do México cresceu apenas 12%, bem abaixo do que cresceu o do Brasil (28%). Na realidade, o México só superou, nesse cômputo, a frágil Guatemala, o país que menos cresceu em toda a América Latina, com base nesse parâmetro específico. O recente crescimento do México, obtido graças, essencialmente, ao afluxo de capitais especulativos, não muda esse quadro estrutural.
Quanto aos imensos investimentos que o México esperava receber, em razão de suas concessões incondicionais ao livre-comércio, eles se dirigiram em volume incomensuravelmente maior para a China, uma economia bastante “estatizada”, porém extremamente dinâmica.
No que se refere à inovação tecnológica, o México, como reconhece a própria Academia Mexicana de Ciências (AMC), é um dos países mais atrasados do mundo. Para se ter uma ideia, as universidades chinesas conseguiram, em 2011, o reconhecimento de cerca de 35 mil patentes. As universidades mexicanas requereram apenas 70 e, desse total, somente 35 foram reconhecidas. Para quem pensava que a abertura da economia levaria automaticamente ao desenvolvimento tecnológico, o México é um gritante contraexemplo. Maquiladoras não geram inovação.
No Brasil, em contraste, a estratégia de inserção econômica no cenário mundial produziu resultados altamente progressivos. De fato, o Brasil adotou uma estratégia de inserção inversa à do México e a de outros países da região. A partir do governo Lula, o nosso país rejeitou claramente a proposta da ALCA ampla norte-americana, que continha cláusulas idênticas às do Nafta, e apostou na integração regional, via Mercosul e Unasul, na grande diversificação de suas parcerias estratégicas, especialmente com os demais BRICs, e na articulação geopolítica Sul-Sul, sem descuidar, porém, de suas boas relações com os países mais desenvolvidos.
O grande aumento das nossas exportações e os alentados superávits comerciais que tal estratégia proporcionou foram decisivos para reduzir substancialmente a nossa vulnerabilidade externa, zerar a dívida externa brasileira e criar um quadro econômico propício à redução das taxas de juros e à retomada do crescimento. Além disso, tal estratégia aumentou significativamente nosso protagonismo internacional e nossa autonomia político-diplomática. O resultado mais eloquente dessa inserção internacional, associada ao modelo de desenvolvimento brasileiro, tange ao fato de que, no Brasil, a maioria da população foi beneficiada.
Assim, ao contrário do México e de outros países da região, o Brasil é hoje ator mundial de primeira linha, que consegue articular exitosamente os interesses regionais e os anseios dos países em desenvolvimento em todos os foros internacionais relevantes. O nosso país fez a escolha estratégica acertada e soube aproveitar pragmaticamente as mudanças na ordem geoeconômica mundial, que deslocaram o centro dinâmico da economia internacional para os países emergentes. Já os países que apostaram na integração assimétrica aos EUA e às demais grandes economias internacionais não colheram, em geral, os frutos apregoados pelo ideário paleoliberal e se tornaram mais vulneráveis à crise mundial, que vem afetando mais intensamente as economias da Tríade (EUA, União Europeia e Japão).
A tendência, diga-se de passagem, é que os países emergentes continuem a apresentar maior dinamismo, o que recomenda o prosseguimento dessa estratégia exitosa, que nos transformou num autêntico global player, com uma corrente de comércio bastante diversificada.
A Aliança do Pacífico, o novo modismo do livre-cambismo regional, não passa, por conseguinte, de uma miragem paleoliberal.
Uma mistura de ideologia com fatos mal-assimilados. Uma Aliança do Factoide.
Marcelo Zero é assessor técnico da Liderança do PT no Senado