Especialistas apontam que o problema pode estar no ensino oferecido pelas escolas
“Estamos colocando nossas crianças em uma vala comum com rótulos e preconceitos”, disse Marilene Proença
O abuso dos diagnósticos de transtornos em jovens e adolescentes – seguido do uso exagerado de remédios tarja preta – atemoriza os educadores e levanta muitas dúvidas. Para crianças com problemas de aprendizagem ou com comportamento diferente do padrão, o tratamento crescente tem sido a substância química contida no medicamento. O mais popular deles é a Ritalina, apelidada de “droga da obediência”, receitada em larga escala por psiquiatras e neurologistas, o que levou o Brasil, desde 2009, a ocupar o posto de segundo maior consumidor mundial do medicamento.
Várias perguntas precederam a formulação do projeto que a senadora Ângela Portela (PT-RR) acaba de apresentar. O uso crescente desses medicamentos se justifica? Tratar crianças e adolescentes com prováveis transtornos com uso intensivo de psicofármacos não pode levar a sociedade a um padrão indesejável, no qual predominam comportamentos padronizados? O desenvolvimento saudável passa necessariamente pela redução dos conflitos e da homogeneização do ser humano?
Essas e outras questões estão colocadas pela senadora no projeto para enfrentar o uso exagerado de remédios comportamentais. Um sinal claro para enfrentar o problema é que o Brasil, nos últimos anos, está entre os países que mais consomem esse tipo de remédio no mundo. O caminho por ela adotado é o da proposta de alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente, para dificultar o uso indiscriminado dos chamados psicofármacos, criando exigências e procedimentos mais rigorosos, para que a medicação seja cosumida depois de passar por um diagnóstico mais cauteloso, respeitando rigidamente os protocolos estabelecidos pelo Ministério da Saúde.
“Estou convicta de que a proposta irá beneficiar nossas crianças e nossos adolescentes, contribuindo para reduzir a medicalização nos problemas comportamentais ou dificuldades no processo de ensino-aprendizagem que podem e devem ser abordados por métodos que prescindam da administração de psicofármacos”, diz a senadora, na apresentação de seu projeto.
O que a senadora Ângela Portela pretende é que o uso dos medicamentos seja restrito a pacientes que de fato necessitem dele. “Queremos restringir o uso de psicofármacos aos casos que se efetivamente se enquadram nos protocolos clínico-terapêuticos que já estão aprovados e consolidados pelas instâncias técnicas competentes. Além disso, proponho também a realização de campanhas permanentes de esclarecimento sobre o assunto”, diz ela
A realização de campanhas de esclarecimento, enfatiza a senadora, pode ser de grande ajuda para enfrentar o problema, pois será por meio delas que procuraremos esclarecer país, educadores e alunos quanto ao uso indiscriminado e desnecessário dessas medicações. “Para a conscientização pretendida”, diz, “será preciso que todos estejam muito atentos quanto à real necessidade de se tratar quimicamente problemas que podem ser apenas de comportamento”.
Outro obstáculo a ser vencido é o poder das empresas e profissionais que obtêm lucro fácil com a disseminação desses remédios. Para Ângela, “os interesses econômicos de laboratórios farmacêuticos reforçam a tendência de profissionais de saúde e de educação transformarem um problema não médico em um problema biológico do indivíduo que só pode ser curado à base de drogas”. A esse processo dá-se o nome de “medicalização”.
Na justificação de seu projeto, a senadora se mostra especialmente preocupada com o crescimento expressivo, no Brasil de diagnósticos de transtornos de déficit de atenção (TODA) ou TDAH – quando se diagnosticam também sintomas de hiperatividade. Como expressões da moda, se multiplicam velozmente em siglas, como o recém-divulgado TOD, ou Transtorno de Oposição Desafiadora, ou a criança que, segundo o padrão da normalidade, questiona muito seus pais ou professores.
Debate também na Câmara
Na última quarta-feira (11/07), a senadora recebeu uma comitiva de educadores e psicólogos para tratar do problema e de seu projeto. Os profissionais estavam em Brasília, para participar de uma audiência pública realizada na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, onde também se debate o problema.
Marilene Proença, representante do Conselho Federal de Psicologia, uma das especialistas presentes no encontro, afirmou que, em muitos casos, crianças e jovens “estão sendo vítimas da ideia de que a educação é um fenômeno circunscrito ao indivíduo. Por causa desse equívoco, diz ela, “quando se tem uma criança que não lê, não escreve e não presta atenção, não se questiona a escola que está sendo oferecida a ela, mas que é ela quem não está tendo a atenção necessária e que isso seria uma patologia.”
A abrangência e a rapidez com que esse problema de propaga nas escolas brasileiras – e não só entre crianças e adolescentes – motiva o Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, que tem o propósito de denunciar a banalização do uso de vitaminas, ansiolíticos e outros medicamentos, sejam eles alopáticos, homeopáticos ou fitoterápicos – alguns com poder de levar à dependência química e psíquica.
Outra profissional que integra o Fórum, a professora do Departamento de Pediatria da Unicamp e integrante do Fórum sobre Medicalização, Maria Aparecida Moisés, esclarece que os principais alvos da medicalização são as áreas de comportamento e de aprendizagem – “não por acaso, as mais difíceis de diagnosticar”, observa. Ela diz ainda a medicalização é um problema coletivo e, portanto, social, além de político, econômico, cultural. “Esses problemas são individualizados. Em vez de se discutir a política educacional, as instituições e que sociedade é essa que estamos construindo – cada vez mais produtivista, mercadológica e competitiva -, discutimos qual é o transtorno de cada uma das pessoas, como se apenas elas tivessem problema”.
Os problemas existem – e devem ser tratados -, mas com muito mais rigor e propriedade do que hoje. “Quem sonha tem déficit de atenção. Eu não nego que há pessoas com mais dificuldade para aprender, que aprendem de modos diferentes e com comportamento muito fora do padrão. A questão é: o que está acontecendo com essas pessoas, que geralmente estão pedindo socorro? A gente está precisando reaprender a enxergar as crianças e os adolescentes e a escutar o que eles têm a nos dizer”.
Protocolos e questionários
Para a professora da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (Abrapee) Roseli Fernandes Caldas, a medicalização é um fenômeno presente nas redes pública e privada. “A situação é grave e de nível nacional”. Ela manifestou preocupação com os protocolos seguidos pelos médicos para o diagnóstico de tais transtornos, baseados em questionários, de caráter opinativo, preenchidos por professores ou pais.
Na opinião da conselheira Marilene Proença, doenças neurológicas deveriam ser muito bem comprovadas para existirem. “As bases diagnósticas dessa pretensa doença neurológica estão baseadas simplesmente em opiniões e observações”.
Marilene assinala ainda que sentimentos como tristeza, alegria e medo passaram a ser medidos e, se ultrapassarem uma determinada métrica geral para toda a população, são transformados de sentimentos legítimos em diagnósticos patológicos, tratados com anfetaminas, estimulantes e outros medicamentos de tarja preta que provocam dependência. “Nessa métrica, chega-se ao cúmulo de estabelecer que é possível chorar a morte de uma pessoa querida por 15 dias. Mais do que isso, seria indicativo de um quadro depressivo passível de medicação”.
Marketing da indústria farmacêutica
Os especialistas atribuem essa tendência ao marketing da indústria farmacêutica, que oferece brindes aos médicos pela quantidade de remédios de determinada marca receitados aos pacientes.
O consultor de saúde da criança do Ministério da Saúde, Ricardo Carafa, reconheceu a gravidade do tema e o mau preparo dos médicos para lidar com o problema. “A discussão sobre a medicalização é pouco feita no Brasil. Quer na sua formação, quer depois, na sua prática, o médico não tem muito conhecimento sobre isso. A indústria farmacêutica joga todo um peso por meio de material informativo, congressos e faz com que o médico comece a aceitar esse tipo de doença como realidade, quando, na verdade, não é”.
Carafa admitiu que o Ministério da Saúde não tem dados concretos sobre os diagnósticos, mas sim sobre o aumento vertiginoso na venda dos psicotrópicos. O processo teria começado por volta dos anos 1990, mais concentrado nas classes média e alta. Agora, estaria disseminado pela população de todas as classes sociais. “É assustador: uma epidemia de diagnósticos que gera uma enxurrada de medicação”.
O consultor defendeu ações intersetoriais (educação, saúde, assistência social, etc) para o desenvolvimento de alternativas terapêuticas.
Vice-campeão de utilização
O Brasil aparece, desde 2009, como o segundo maior consumidor mundial do medicamento – com a venda de quase dois milhões de caixa – cujo princípio ativo é o cloridrato de metilfenidato – a Ritalina. Conforme relato de pesquisadores do Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde, do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais (IPSEMG), estudos mostram que o medicamento está sendo receitado inclusive para crianças muito novas, de menos de três anos.
Os pesquisadores investigaram as características das prescrições para TDA e TDAH por meio da revisão de dezenove artigos científicos disponíveis em diferentes bases de dados. Vale recordar que não há comprovação dos efeitos desses medicamentos em pessoas de menos de quatro anos.
“O que está acontecendo com os familiares e professores para essa demanda?”, questionam os pesquisadores. Eles aventam uma possibilidade. “Uma resposta hipotética é que, como as famílias estão progressivamente menores, com mais mobilidade de parceiros e geográfica e jornadas duplas de trabalho, as pessoas estão ficando mais intolerantes com a normal inquietação motora das crianças dessa faixa etária”. Ou, em palavras mais simples: pais e professores estão menos tolerantes a um comportamento que é absolutamente normal em crianças e jovens – que são naturalmente ativos, curiosos e inquietos.
Giselle Chassot, com informações da Agência Câmara
Confira o projeto da senadora Ângela Portela
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