Gaiger: “Foi o gasto social que assegurou os ganhos distributivos que tivemos nos últimos anos”Cyntia Campos/PT no Senado
A classe dominante brasileira é implacável: além de obstruir, historicamente, qualquer possibilidade de justiça fiscal por meio da arrecadação dos recursos para o financiamento do Estado — como atestam as inúmeras propostas de reforma que tentam tornar a tributação mais progressiva, sempre abortadas — agora investe contra o pouco de justiça social que se conseguiu realizar no País por meio dos gastos públicos.
Esse é claramente o objetivo da PEC 241, a chamada “PEC da morte”, que pretende reduzir progressivamente os investimentos em saúde, educação e políticas sociais pelos próximos de 20 anos, “desmontando o pouco de bem-estar social que se começou a construir a partir da Constituição de 88”, como aponta a senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR).
Gleisi presidiu, na manhã desta terça-feira (25), mais uma audiência pública sobre a “PEC da morte” na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado. Foram ouvidos os especialistas Felipe Rezende, professor de Economia da Hobart and William Smith Colleges (Nova York, EUA), André Calixtre e Fernando Gaiger, ambos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
Eles analisaram a estrutura tributária brasileira, apontando uma série de exemplos da injustiça do sistema e demonstrando como uma maior progressividade dos tributos seria uma alternativa muito mais eficaz ao equilíbrio fiscal do que o pretendido corte nos investimentos sociais que o governo Temer pretende implementar com a PEC 241.
A progressividade é um princípio inscrito na Constituição segundo o qual os impostos devem incidir mais sobre quem tem mais riqueza. No Brasil, ocorre exatamente o contrário. “Quanto maior a renda do cidadão, menor a carga tributária”, atesta o pesquisador do Ipea, Fernando Geiger. E isso não é um acidente: o modelo tributário brasileiro foi formatado exatamente para isso, com ênfase nos impostos indiretos — embutidos nos preços de produtos e serviços e que têm o mesmo valor para quem ganha muito e para quem ganha pouco — e na tributação dos salários.
Enquanto isso, a tributação dos bens e dos lucros do capital, por exemplo, é irrisória. O IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores) e o IPTU (Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana), que incidem sobre propriedades, são neutros, isto é, não levam em conta a capacidade contributiva – outro princípio constitucional — de quem paga. “Isso é uma vergonha”, lamenta Fernando Gaiger. “Não há nada na legislação brasileira que autorize a progressividade nesses dois tributos”. Um aspecto ainda mais perverso sobre o IPVA: ele incide sobre automóveis, mas helicópteros, jatos particulares e iates estão isentos da cobrança.
O senador Lindbergh Farias (PT-RJ) apresentou um dado insofismável sobre essa realidade. No Brasil, as 71 mil pessoas mais ricas — bilionárias, na verdade — detêm 8% da renda nacional e pagam apenas 6% dessa renda em tributos. Isso é resultado, principalmente, de uma mudança na legislação feita no governo de Fernando Henrique Cardoso, que isentou de tributos a distribuição de lucros e dividendos aos sócios das empresas. Enquanto um empregado paga até 27,5% de seu salário em Imposto de Renda, o dono da empresa recebe sua remuneração a título de lucros e dividendos e não paga nada.
Ao mesmo tempo, 53% do bolo tributário arrecadado do País são pagos por quem ganha até três salários mínimos, como já havia demonstrado o cientista político Jessé de Sousa em audiência anterior da CAE sobre o mesmo tema.
Diante da dificuldade de construir uma correlação de forças para alterar o modelo de arrecadação de tributos — os representantes das classes dominantes no Congresso engavetam propostas nesse sentido, a grande imprensa bombardeia projetos… — resta ao País aplicar os recursos arrecadados de maneira mais equânime. “Foi o gasto social que assegurou os ganhos distributivos que tivemos nos últimos anos”, ressalta Fernando Gaiger. “Agora querem cortar justamente os gastos de natureza progressiva — de caráter distributivo. Essa alavanca será muito prejudicada”.
Autor de uma série de projetos que pretendem resgatar o caráter progressivo da tributação, como a cobrança de IPVA de lanchas, helicópteros e iates e o restabelecimento da cobrança de tributos sobre os lucros e dividendos, Lindbergh Farias ressalta que não é possível analisar a “PEC da Morte” sem olhar o outro ângulo da questão, que é o desenho tributário nacional. Até porque, lembra o senador, o País não está em crise por excesso de gastos, como afirma o governo Temer, mas por uma significativa queda das receitas.
“Alguém acha que gastamos demais em 2015?”, questiona, lembrando que no ano passado o governo Dilma fez um contingenciamento de R$ 69,9 bilhões no Orçamento, o maior da história. O senador lamenta que o debate sobre a “PEC da Morte” esteja sendo permeado pela desinformação, com o governo Temer usando argumentos falaciosos para defender o corte dos investimentos sociais como “salvação da lavoura.
Um exemplo é a simplória comparação do Orçamento público com a economia doméstica, como se o investimento público fosse a mesma coisa que o gasto de uma família que precisa “apertar o cinto” quando sua renda cai. “Pelo contrário, o gasto público é fundamental no aquecimento da economia. É exatamente em períodos de crise, de desaceleração, que o estado precisa investir mais”.
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