O governo Lula não irá celebrar, no sábado (1º), um dos períodos mais obscuros da nossa história: os 59 anos do início do golpe militar no país. Após uma gestão negacionista, que falsamente caracterizavam a ditadura como “um marco histórico”, o Brasil volta a respirar os ares democráticos. E relembra a época de trevas para que nunca mais se repita.
O próprio ex-vice-presidente de Bolsonaro a exalta. O agora senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS) usou a tribuna, na quinta-feira (30), para afirmar que o regime militar deixou “importante legado” para o processo democrático do país, pois “foi responsável por criar as condições para que as instituições políticas, econômicas e sociais funcionassem na plenitude democrática”. Só se for como exemplo do que “não fazer” no governo.
“Passamos por tempos sombrios, não apenas durante o regime militar, mas também nos últimos quatro anos – onde vivemos uma ditadura em plena democracia. Não é de se espantar que Bolsonaro e seus asseclas defendam tanto os preceitos ditatoriais: são frutos das mentiras e do descaso de uma era de assassinatos, perseguições e incompetência de gestão. Que esse período seja apenas lembrado, agora e para sempre, como verdadeiramente foi: um golpe de Estado”, criticou o líder do PT no Senado, Fabiano Contarato (PT-ES).
A ditadura militar (1964-1985) deixou um rastro de sangue e prejuízos. O período foi marcado pela censura, cassação de direitos políticos de opositores, violação de liberdades individuais, da tortura e 434 pessoas desaparecidas ou mortas, todas vítimas do então governo.
Outro “legado” foram os enormes prejuízos econômicos e sociais deixados, como a disparada da dívida externa, da inflação e das desigualdades, além da redução do poder de compra do salário mínimo. Foi ainda um tempo marcado propinas e desvio de verbas públicas.
“Há 59 anos, o Brasil sofreu o golpe militar, que nos levou à ditadura, o período mais sombrio da nossa história. Após muita resistência, superamos este triste episódio, mas ficou a lição de que a democracia é uma conquista pela qual devemos lutar e defender todos os dias”, lembrou o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA).
O senador afirmou que, sob a liderança do presidente Lula, a esperança está sendo devolvida ao povo e a democracia, fortalecida.
“Como ele [Lula] mesmo lembrou: ‘Sob os ventos da redemocratização, dizíamos: ditadura nunca mais! Hoje, depois do terrível desafio que superamos, devemos dizer: democracia para sempre!’. E assim será, pois, o verdadeiro Brasil, aquele que pertence a todos os brasileiros e brasileiras, enfim está de volta”, celebrou Wagner.
Verdade por justiça
A gestão Lula relembra a época de outra forma: olhando para as vítimas e familiares que sofreram no regime autoritário. Na quinta-feira (30), foi realizada a primeira sessão de julgamento da Comissão de Anistia, responsável por investigar perseguições durante a ditadura, já com a nova composição indicada pelo presidente.
Ao todo, a gestão Bolsonaro negou 95% dos pedidos de reparação analisados pelo colegiado. Agora, a comissão revisará esses e outros processos indeferidos. Um dos pedidos de revisão é o da ex-presidenta do Brasil e atual presidenta do banco dos Brics, Dilma Rousseff, torturada por militares.
“Que o Brasil inaugure uma nova fase de restauração da memória, da verdade e da justiça”, afirmou a senadora Teresa Leitão (PT-PE).
Violação de direitos
O chamado “Golpe de 64” retirou da população direitos básicos, como a eleição direta para a presidente, a censura – tanto de manifestações artísticas e populares quanto da imprensa –, a oposição democrática ao atual governo e um controle de informações que afetavam diretamente a educação no país.
Além dos mais de 400 desaparecidos no período, os ataques a opositores afetaram milhares de pessoas no país. Segundo o relatório “Brasil: Nunca Mais”, ao menos 1.918 prisioneiros políticos atestaram ter sido torturados entre 1964 e 1979. As formas cruéis descritas no documento incluem 283 diferentes formas de tortura adotadas na época pelos órgãos de segurança.
Um dos casos mais famosos e bárbaros foi a Operação Cajueiro, quando as forças armadas iniciaram em Sergipe uma ação de ataque a opositores. Dezenas de sergipanos foram presos arbitrariamente sob a acusação de pertencerem ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), na ilegalidade na época. Mas quase nenhum dos acusados possuía qualquer ligação com a sigla.
“O Golpe de 64 trouxe consequências terríveis para o Brasil e também para Sergipe, como a famigerada Operação Cajueiro. Houve perseguição, prisões injustas e tortura. É importante que as novas gerações nunca se esqueçam do que aconteceu, para que não se repita!”, ressaltou o Primeiro-Secretário do Senado, Rogério Carvalho (PT-SE).
Economia em ruínas
As consequências da ditadura militar no país também marcaram negativamente a economia, de tal forma que as consequências afetaram o Brasil pelas décadas seguintes ao fim do golpe.
Um dos “legados” foi uma dívida externa que passou de US$ 3,3 bilhões, em 1964, para incríveis US$ 102 bilhões em 1984 – alta de 3.000%. O resultado gerou crises e baixo crescimento econômico do país nos anos 1980 e 1990.
Outro indicador que cresceu vertiginosamente foi o da inflação. A taxa anual chegou a 178%, persistindo alta nos seguintes e só sendo controlado com o Plano Real, já no meio da década de 1990.
O que também aumentou foi a disparidade de classes. Como a economia não acompanhou o crescimento populacional do país, o indicador de desigualdade (índice Gini) só viria a melhorar nos anos 2000 (lembrou do primeiro mandato de algum presidente?), quando voltaria aos patamares registrados na década de 1960.
Na mesma época, o poder de compra do salário mínimo caiu quase pela metade. E poderia ter sido pior, já que o governo Castelo Branco (1964-1967) tentou sem sucesso proibir a correção dos salários no Brasil pela inflação passada – tentativa, aliás, também ventilada no governo Bolsonaro.
Corrupção
Finalmente, uma das maiores fake news distribuídas até hoje é a de que não existia corrupção na ditadura. Há casos de todos os tipos: de relacionamento de militares com o contrabando do Rio de Janeiro a benefícios de empresas privadas pelo governo.
Os temas foram tratados em reportagem do site UOL. É o caso do envolvimento de sargentos, capitães e cabos com o contrabando carioca. “O capitão Aílton Guimarães Jorge, que já havia recebido a honra da Medalha do Pacificador pelo combate à guerrilha, era um dos integrantes da quadrilha que comercializava ilegalmente caixas de uísques, perfumes e roupas de luxo, inclusive roubando a carga de outros contrabandistas”, diz o texto.
Outro tema relembrado pelo site trata de reportagem de 1982 da Folha de S.Paulo. De acordo com o jornal, o Grupo Delfim, empresa privada de crédito imobiliário, foi beneficiado pelo governo por meio do Banco Nacional de habitação ao obter Cr$ 70 bilhões (moeda da época) para abater parte dos Cr$ 82 bilhões devidos ao banco. O texto diz ainda que os terrenos usados para a quitação valiam apenas Cr$ 9 bilhões.
“Os militares não tinham interesse em deixar vazar casos de corrupção que envolviam seus aliados ou colegas de farda, justamente para não estimular a descrença nas autoridades e no poder de Estado. Impedir a publicação de notícias sobre a corrupção era parte da estratégia de segurança nacional”, explica artigo no site Memórias da Ditadura.
Ainda como lembra a página, o próprio general Ernesto Geisel, presidente do país de 1974 a 1979, utilizou a “corrupção das Forças Armadas” como uma das justificativas para iniciar a “abertura” política e afastar os militares dos encantos e armadilhas do poder de Estado.
DITADURA NUNCA MAIS 🎨 @artevillar1 pic.twitter.com/EN7cnUobca
— Humberto Costa (@senadorhumberto) March 31, 2023
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