Azevêdo é a vitória do Brasil e dos Brics

Embaixador brasileiro representará o interesse dos países em desenvolvimento na OMC. 

O embaixador brasileiro Roberto Azevêdo, um diplomata brilhante com cerca de 20 anos experiência em negociações comerciais, é o novo Diretor–Geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), instituição multilateral que há 18 anos dita as regras para os fluxos internacionais de comércio.

Na reta final de uma acirrada e complexa disputa, ele enfrentou o candidato mexicano Herminio Blanco. Tratava-se, assim, em aparência, de uma disputa entre dois latino-americanos. Mas só na aparência.

Herminio Blanco é pós-graduado em Economia pela Universidade de Chicago, a mesma que formou os “Chicago Boys”, responsáveis pela implantação do modelo neoliberal no Chile de Pinochet, ainda na década de 1970. Conservador e ortodoxo, Blanco representava essencialmente, na disputa, os interesses dos EUA, da União Europeia e de outros países mais desenvolvidos, que almejam maior abertura do comércio internacional para produtos manufaturados e serviços, regras mais severas para a proteção da propriedade intelectual e normas mais abrangentes para a proteção dos investidores. Enfim, querem que os países emergentes abram mais os seus mercados para os produtos em relação aos quais são mais competitivos. Ademais, desejam que no sistema comércio internacional sejam introduzidas normas sobre propriedade intelectual que protejam mais rigidamente os interesses de suas indústrias que dependem de patentes, como as indústrias farmacêuticas, por exemplo, e cláusulas relativas à proteção dos seus investimentos. Em contrapartida, tais países são refratários a uma revisão da grande proteção de seu setor agrícola e da generosa política de subsídios à agricultura, que distorce inteiramente o comercio internacional dessas commodities.   

Por outro lado, a candidatura Azevedo representava os interesses dos BRICS e da maior parte dos países em desenvolvimento, que almejam um comércio mundial com regras mais equilibradas, voltadas para assegurar um desenvolvimento mais harmônico.

Na realidade, a grande briga na OMC para os países emergentes foi, desde o início, a da busca de regras menos assimétricas no comércio mundial.

Como se sabe, a atual Rodada de Doha, que até não pôde ser concluída, deveria ser, fundamentalmente, uma rodada para que os países em desenvolvimento pudessem obter algumas vantagens prometidas na Rodada Uruguai (a rodada que criou a OMC), mas efetivamente nunca alcançadas. Essas promessas não cumpridas dizem respeito, em grande parte, à liberação do comércio agrícola mundial, hoje extremamente protegido por barreiras tarifárias e não-tarifárias, assim como por uma montanha de subsídios nos países desenvolvidos. Contudo, tais países querem condicionar quaisquer concessões na área agrícola, ou em outras áreas de interesse das nações em desenvolvimento, a grandes benefícios em temas que são do seu interesse ofensivo, como serviços, propriedade intelectual, investimentos e bens industrializados.

A agricultura é, de fato, uma pendência da Rodada Uruguai. Naquela ocasião, os países em desenvolvimento reivindicavam basicamente concessões dos países desenvolvidos em relação a dois grandes temas que já estavam previstos na agenda: agricultura e têxteis. A resposta das nações industrializadas foi a de que tais concessões seriam possíveis caso os países em desenvolvimento concordassem com a inclusão nas negociações de novos temas, como propriedade intelectual e serviços. Pois bem, os países desenvolvidos pressionaram fortemente os países em desenvolvimento para que as negociações avançassem nesses novos temas e na redução tarifária de produtos industrializados, mas barraram progressos significativos em agricultura e têxteis. Com efeito, pouco antes do término das negociações, a União Europeia – UE e os EUA fizeram o “acordo de Blair House”, pelo qual cerravam fileiras para defender seus interesses defensivos principais nas negociações: agricultura (UE) e antidumping (EUA).  Os países em desenvolvimento, sem capacidade de articulação, na época, foram derrotados e acabaram aceitando acordos essencialmente assimétricos.

Dessa forma, o resultado final daquela rodada foi um conjunto desequilibrado de compromissos que prejudicou fortemente os países em desenvolvimento. Com efeito, as concessões tarifárias feitas pelos países em desenvolvimento foram, em média, 2,3 vezes maiores do que as ofertadas pelas nações mais ricas. Além disso, os acordos relativos à propriedade intelectual e serviços consolidaram, no plano internacional, os interesses das grandes companhias detentoras de patentes, especialmente na área farmacêutica, e das multinacionais de telecomunicações e do campo financeiro, em detrimento, entre outras, das políticas de saúde pública e monetária dos países em desenvolvimento.

Estudo sobre os impactos da liberalização proporcionada pela Rodada Uruguai demonstra que os efeitos combinados das reduções das barreiras ao comércio em todos os níveis resultaram num ganho econômico de cerca de US$ 75 bilhões, em seus primeiros 5 anos de vigência. Porém, desse total, ao redor de US$ 70 bilhões foram para os países desenvolvidos e US$ 5 bilhões para os NICs (New Industrialized Countries- Coréia, Cingapura, Taiwan, etc.). As nações em desenvolvimento não foram beneficiadas. Pelo contrário, o mesmo estudo mostra que os países em desenvolvimento do hemisfério ocidental tiveram um prejuízo de cerca de US$ 2,5 bilhões.

Agora, na interminável Rodada de Doha, o Brasil vem se empenhando na busca de condições mais equitativas e justas para o comércio internacional e na tentativa de criar regras equilibradas nos acordos da OMC, resolvendo as antigas pendências da Rodada Uruguai.

Na realidade, esse complexo jogo geopolítico entre países desenvolvidos em desenvolvimento na OMC começou a virar com a criação do chamado G-20, na reunião de Cancún, em 2003, por muitos definido como um “golpe de mestre” da diplomacia brasileira. A criação desse grupo articulado de países emergentes na OMC, liderados pelo Brasil, mudou a correlação de forças das negociações da OMC criando, dessa forma, as condições político-diplomáticas necessárias para a elaboração de acordos que confiram ênfase à dimensão do desenvolvimento naquele organismo multilateral e corrijam as assimetrias geradas na Rodada Uruguai.

Assim sendo, a vitória de Azevedo representa, ao mesmo tempo, a culminação desse esforço de melhor representar os interesses dos países emergentes na OMC e a consolidação da liderança do Brasil no cenário mundial.

Em contrapartida, a derrota de Blanco carrega o simbolismo da derrota das teses neoliberais sobre o comércio internacional. Poucos ainda acreditam que a abertura incondicional das economias promove o desenvolvimento harmônico entre países com distintos níveis de desenvolvimento. Essa tese, muito em voga na década de 1990, quando foi criada a OMC, caiu em descrédito acelerado com a crise mundial.

O Brasil e muitos outros países emergentes querem que o comércio mundial funcione para todos, com regras mais simétricas que assegurem a indução do desenvolvimento de todas as nações e a progressiva eliminação da pobreza em todos os países. Ademais, o Brasil se opõe também ao uso das moedas de intercambio como instrumentos protecionistas, tal como vem ocorrendo, agora, em plena crise mundial. Trata-se de um novo tipo de protecionismo, a guerra cambial do comércio, que afeta particularmente os países em desenvolvimento, como o Brasil.

O sentido maior da vitória de Azevêdo reside nisso.

É um bom recomeço para a OMC.

*Marcelo Zero é assessor técnico da Liderança do PT no Senado

 

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