Em uma de suas frases mais inquietantes, Jean Paul Sartre disse: “Mesmo que fôssemos mudos e quedos como pedras, até nossa passividade seria uma ação”.
A prisão de uma mulher, desempregada, que vive em situação de rua há 10 anos, mãe de cinco filhos, os mais novos com 2 e 3 anos de idade, decretada por uma juíza de São Paulo e confirmada pela 6ª Câmara do Tribunal de Justiça daquele Estado no dia 08 de outubro último, pelo furto de dois refrigerantes, um refresco em pó e dois pacotes de macarrão instantâneo para matar a fome, avaliados em R$ 21,69, é daquelas decisões judiciais reveladoras da miséria humana que pode se esconder sob as togas e do pensamento distópico sobre a mais simplória ideia de justiça.
O caso mereceu pouco destaque na imprensa, mas ganhou as redes sociais.
O princípio da insignificância ou da bagatela, como é conhecido, que determina os casos em que não há necessidade de punir o autor ou autora de um delito, nem de se recorrer aos meios judiciais, tem relação com o princípio da intervenção mínima do Direito Penal. Este, por sua vez, parte do pressuposto que a intervenção do Estado na esfera de direitos do cidadão deve ser sempre a mínima possível, para que a atuação estatal não se torne desproporcional e desnecessária, diante de uma conduta incapaz de gerar lesão ou ameaça de lesão ao bem jurídico tutelado.
Foi com base nesse princípio que o ministro Joel Ilan Paciornik, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), concedeu um habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo e determinou a soltura da mulher.
Nos debates judiciais, a questão central para uma decisão justa me parece sempre aquela oferecida pelo desafio de enxergar o ser humano no contexto das circunstâncias sociais em que está inserido, além do potencial lesivo do ato praticado e a solução ideal para o conflito, com base na lei e nos princípios de Direito. Lição comezinha que nos obriga a ver que alguém que furta para comer ou para dar de comer a seus filhos menores, com absoluta certeza, não pode ser enviado à prisão. Mas foi. E por decisão monocrática mantida no colegiado de um tribunal.
Seria hipocrisia e ignorância supor que o fato é exceção no sistema de justiça criminal. As prisões, na verdade, estão cheias de cidadãos e cidadãs presos sob circunstâncias similares. Muitos nunca julgados. O que, por óbvio, não pode nos limitar de falar a respeito desse caso em concreto, sob pena de gritar nosso silêncio, parafraseando Sartre.
A decisão de prisão nada diz ou acrescenta acerca da vida de uma cidadã despida dos mais elementares direitos, que “habita” as ruas, sem teto, sem emprego, sem comida, que não seja elementar. Mas, certamente diz muito sobre quem lhe ofereceu o cárcere em resposta ao desespero de furtar para matar sua fome e de seus filhos.
Não se trata do valor financeiro irrisório do furto, não se trata sequer do debate de sempre sobre a função do processo penal, conquanto o Código de Processo Penal tenha sido absurdamente descumprido nesse caso. Trata-se de algo bem mais básico chamado ausência de empatia com a dor do outro. A incapacidade de enxergar além das páginas dos autos e da letra fria da lei e da jurisprudência.
O Direito não é, nem pode ser, um fim em si mesmo. Ele não deve ser invocado para aplicar castigo sobre miseráveis, manobrado para exibição de poder pessoal ou satisfação de vaidades incontidas, sob a desculpa esfarrapada de “aplicar a lei”, quando na verdade se está fazendo uma escolha que é ideológica e cínica e, pior, obscurantista e desumana.
O fundamento de conduta reiterada usado pelos juízes para determinar a prisão é igualmente uma antinomia. Evidente que a prática já ocorrera antes, como é fácil supor que será repetida pela cidadã enquanto não cessar sua necessidade básica de sobrevivência, ou seja, enquanto ela e seus filhos sentirem fome. E fome é problema social, não criminal.
Decisões como essa nos dizem muito sobre quem ocupa as cadeiras de Poder Judiciário em expressiva maioria. Pessoas capazes de olhar a sociedade em total desconexão com a realidade, que desprezam as dores e mazelas humanas, nos apontam que certamente estão no lugar errado.
Também nos dizem muito sobre nós mesmos como coletivo. Nossa incapacidade de reagir ou, até mesmo, capacidade de aplaudir decisões bizarras como essa, nas premissas de que “quem rouba tem que pagar”, “teve filhos porque quis”, “podia trabalhar ao invés de roubar” e tantas frases feitas divulgadas no debate público reveladoras da pobreza de conhecimento e de espírito.
Nos encontramos em uma espécie de fundo do poço civilizatório ou quase lá. Diversos indicadores de debates nos apontam a complexidade dos tempos e a necessidade de novos rumos. Dentre as muitas mudanças, precisamos lutar por um novo sistema de justiça. Um que, entre vários outros aspectos, seja mais generoso, mais humano e menos punitivo.
Artigo originalmente publicado no Brasil de Fato