Na realidade, essa ideia já havia sido aventada em 2009, por iniciativa da China. Naquela época (e ainda hoje), a reação da mídia nativa foi (e é), de um modo geral, hostil à proposição. São levantadas dúvidas sobre os condicionantes dos futuros empréstimos, sobre a capacidade desses países em concretizar a proposta, sobre a conveniência para o Brasil em aderir à iniciativa, etc.
Observe-se que essa reação negativa também se verificou quando, em 2007, foi proposta a criação do “Banco do Sul”, no âmbito da Unasul (União das Nações Sul-Americanas). Nesse caso específico, as reações foram ainda mais duras, pois a iniciativa veio de Hugo Chávez e Néstor Kirchner. Muitos alegaram que tal banco se converteria numa espécie de sucedâneo excludente do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BIRD) para a região, e seria administrado sem critérios técnicos consistentes, ao sabor de conveniências políticas de ocasião.
O pressuposto básico dessas reações diz respeito à ideia de que a atual arquitetura financeira internacional é adequada aos interesses de todos os países e que as principais instituições financeiras multilaterais, o FMI e ao Banco Mundial, funcionam de maneira eficaz, conforme as “regras universais da economia de mercado” e os princípios da “boa economia”.
A bem da verdade, a atual crise demonstrou cabalmente que se há uma coisa que não funciona eficazmente é a arquitetura financeira internacional e as instituições financeiras multilaterais. Essa arquitetura desregulada, que incentiva a formação de bolhas especulativas e o fluxo assimétrico e predatório de capitais financeiros teve papel decisivo para a conformação do presente quadro recessivo da economia mundial. Por sua vez, as principais instituições financeiras multilaterais, principalmente o FMI, com suas ações pró-cíclicas, sempre foram incapazes de enfrentar eficazmente as crises, contribuindo muitas vezes para agravá-las.
Ademais, essa arquitetura financeira e suas instituições multilaterais já não são mais condizentes com a nova geoeconomia mundial, na qual os países emergentes têm protagonismo crescente e os tradicionais países hegemônicos, que ainda dominam tais instituições, têm decrescente peso específico.
A China, por exemplo, que tem quase US$ 3 trilhões em reservas preocupa-se, obviamente, com a hegemonia do dólar como reserva internacional de valor e como vetor comercial de troca. A equação e simples: cerca de 70% das reservas internacionais são em dólar, ao passo que o peso decrescente da economia dos EUA na economia mundial é de menos de 25%. Ademais, o dólar é a moeda de troca em mais de 80% do comércio mundial, sendo que o euro é praticamente responsável por todo o resto.
Tal disparidade gera uma vantagem desproporcional para as economias norte-americana e europeia. O governo dos EUA e, em menor medida, a União Europeia podem inundar o mercado mundial com suas moedas, retirando competitividade das exportações para o mercado norte-americano e europeu e aumentando artificialmente a competitividade dos produtos Made in USA e Made in Europe.
Conforme já denunciaram a própria presidenta Dilma Rousseff e o ministro da Fazenda, Guido Mantega, isso vem sendo feito, no contexto da atual crise econômica. Trata-se da “guerra cambial”, uma forma perversa de protecionismo não tarifário. Assim, os EUA e a União Europeia exportam seus desequilíbrios para o mundo. É uma forma de internacionalizar os custos do combate à recessão interna.
A adoção de uma moeda comum comercial pelos BRICs ou, por exemplo, pelo Mercosul ou pela Unasul, ajudaria a combater a hegemonia do dólar e do euro e seu uso como instrumento protecionista no comércio internacional. Ademais, a sua adoção tenderia a dinamizar e aumentar o comércio entre os países propositores.
Tal possibilidade está explícita nos comunicados da reunião dos BRICs e expressa no artigo 3º do Convênio Constitutivo do Banco do Sul, hoje tramitando no Congresso Nacional, o qual define, como uma das funções desse banco, contribuir para o desenvolvimento de um sistema monetário regional, o que é perfeitamente condizente com o processo de integração do subcontinente.
Com efeito, processos de integração tendem a conformar mecanismos financeiros para facilitar o comércio regional. Parece-nos oportuno recordar que, no âmbito das relações bilaterais Brasil/Argentina, já foi implementado mecanismo para o comércio regional. Trata-se do Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML), que começou a funcionar em outubro de 2008. Entre aquela data e março de 2011, foi comercializado o equivalente a US$ 882 milhões, com esse sistema. O Uruguai já manifestou seu interesse em participar do sistema. No âmbito da Associação Latino-americana de Integração (ALADI), o chamado Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR), que prescinde de moedas internacionais, já subvenciona muitos projetos de investimentos em infraestrutura em toda América do Sul.
É preciso que fique claro, no entanto, que tais moedas ou sistemas monetários a serem eventualmente criados não teriam a mesma natureza do euro. Elas seriam apenas moedas a serem usada nas transações comerciais entre os países. Uma verdadeira moeda comum demandaria a complexa e difícil harmonização das políticas macroeconômicas, o que ainda não está, obviamente, no cenário da Unasul e dos BRICs.
Mas além de dinamizar o comércio entre os países e de neutralizar, até certo ponto, o protecionismo cambial das nações hegemônicas e as assimetrias da arquitetura financeira internacional, a constituição desses dois bancos poderá contribuir para eliminar os gargalos financeiros relativos aos investimentos diretos necessários para o desenvolvimento econômico e social, particularmente em nossa região.
Muito embora estejam presentes em projetos na América do Sul várias instituições financeiras regionais e mundiais, tais como a Corporación Andina de Fomento (CAF), o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Fundo da Bacia do Prata (Fonplata), o Banco Latino-americano de Exportações (BLADEX) e o Fundo Latino-americano de Reservas (FLAR), além do fundo específico do Mercosul- Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM), é preciso considerar que, por diversos motivos (restrições jurídicas, reservas financeiras insuficientes, etc.), elas não conseguem equacionar o claro déficit de investimentos que há na região.
A América do Sul, cujo PIB cresceu a uma média de 5,8% ao ano ao longo da última década, já tem uma economia de porte semelhante à da China. Seu poder de compra, cerca de US$ 4 trilhões de dólares, já ultrapassa o do Japão. Sua corrente de comércio alcançou US$ 1 trilhão de dólares, em 2011. Além disso, a América do Sul já é o segundo mercado mundial para itens como celulares e helicópteros.
Entretanto, apesar desses grandes avanços recentes, em boa parte impulsionados pelo Brasil, e do seu enorme potencial, a América do Sul ainda tem significativas carências e problemas, em termos de infraestrutura, desigualdades sociais e de assimetrias entre os países. Evidentemente, todos esses estrangulamentos repercutem negativamente no processo de integração regional.
Portanto, a criação do Banco do Sul, nos moldes propostos em seu Convênio Constitutivo, isto é, como banco de desenvolvimento e de investimentos da Unasul, deverá ter papel muito positivo para os países da América do Sul e, particularmente, para a integração regional. Projetos relativos à construção de estradas, ferrovias, hidrovias e portos, ao equacionamento das necessidades de abastecimento de energia para a região, ao desenvolvimento sustentável da América do Sul, à integração das cadeias produtivas, à redução das assimetrias entre os países e entre os cidadãos, à educação, ciência e tecnologia, entre muitos outros, poderão ser agilizados e robustecidos com o aporte de recursos desse novo banco regional.
Observe-se que o Brasil, na condição de maior economia da América do Sul, tem muito a ganhar com a dinamização do processo de integração regional e com o crescimento de seus vizinhos. Ao contrário do que afirmam alguns, o nosso país é o maior beneficiário do processo de integração do Mercosul e da Unasul. Temos superávits comerciais alentados com quase todos os países da região.
No ano passado (2011), exportamos cerca de US$ 50 bilhões para a ALADI, dos quais cerca de US$ 40 bilhões foram de produtos manufaturados. Ou seja, 80% das nossas exportações para a região foram de produtos industrializados. No Mercosul, essa proporção é ainda maior: 93%. Tal desempenho resultou num superávit de US$ 13,5 bilhões, 45% do nosso superávit total. Nosso comércio exterior, particularmente nosso comércio exterior de produtos industrializados, depende muito da integração regional e da prosperidade de nossos vizinhos.
Ademais, a América do Sul é uma das regiões que mais recebe investimentos diretos do Brasil. Há, de fato, dezenas de bilhões de dólares de investimentos brasileiros no subcontinente, que beneficiam muitas empresas nacionais e geram empregos qualificados para nossos cidadãos.
Considere-se, adicionalmente, que a Unasul, além de ter uma dimensão comercial econômica própria, tem também uma relevante dimensão político-diplomática, que já se desdobra na conformação de uma geoestratégia comum, plasmada em seu Conselho de Defesa.
Para o Brasil, a Unasul representa a consolidação formal de seu protagonismo na América do Sul, diretriz-chave da sua política externa. Diretriz esta que vem produzindo resultados muito positivos. O Brasil é hoje um ator internacional de primeira grandeza em boa parte porque é um líder regional indiscutível, que contribui para a prosperidade de seus vizinhos. Por conseguinte, a dinamização da integração regional que será proporcionada pelo Banco do Sul interessa ao Brasil. Investir na integração regional é investir política e economicamente em nosso país.
Em relação à China e aos demais BRICs, a nossa relação é estratégica, tanto do ponto de vista econômico, quanto do ponto de vista político-diplomático.
Embora concentrado em commodities, o nosso comércio bilateral com a China é francamente superavitário. No ano passado (2011), tivemos US$ 11, 5 bilhões de superávit. Nos últimos três anos, foram mais de US$ 20 bilhões de superávit, algo muito importante, num cenário de crise internacional. Em contrapartida, com os EUA tivemos, em 2011, mais de US$ 8 bilhões de déficit.
Entretanto, dos US$ 44 bilhões que exportamos para a China em 2011, apenas US$ 2 bilhões foram de manufaturados, ao passo que, dos US$ 25 bilhões que exportamos para os EUA, mais de US$ 11 bilhões foram de produtos industrializados. Obviamente, isso gera desconfianças e resistências no Brasil, em relação àquele país.
Porém, há espaço, nas nossas relações bilaterais, para uma maior cooperação tecnológica e industrial com a China. Nesse sentido, a criação do Banco dos BRICs poderia contribuir não apenas para dinamizar ainda mais o comércio bilateral, mas também para propiciar investimentos destinados a aumentar a competitividade da nossa indústria de transformação, dentro da perspectiva de uma maior integração das cadeias produtivas de ambos os países.
É necessário levar em consideração que a continuidade da crise mundial, agora agravada na Europa, poderá desacelerar o crescimento dos países emergentes. Isso teria eventualmente como consequência a necessidade da China investir mais em seu mercado interno, em detrimento da atual ênfase excessiva nas exportações.
Essa possível mudança de estratégia econômica deverá, de um lado, reduzir o dinamismo das exportações chinesas e, de outro, abrir mais o mercado interno chinês para produtos, serviços e investimentos externos. A China ainda tem centenas de milhões de pessoas excluídas ou parcialmente excluídas do mercado de consumo. Quando esses indivíduos passarem a consumir mais, será aberto um espaço não apenas para mais exportações de commodities, mas também para produtos manufaturados.
O Brasil pode e deve se posicionar bem para aproveitar as possíveis novas oportunidades que poderão se abrir com tais mudanças.
O mesmo raciocínio também se aplica aos demais BRICs. Na realidade, o nosso potencial de cooperação com esses países ainda está em nível muito incipiente, especialmente com a Índia, outro gigante demográfico que cresce a taxas expressivas. Há muito a ser explorado.
O êxito estratégico e econômico recente do Brasil, que se mantém apesar da crise, se explica por dois fatores essenciais. No plano interno, pela distribuição de renda e a incorporação de dezenas de milhões de brasileiros ao mercado de consumo de massa, o que nos permite manter dinamismo econômico, mesmo com estrangulamentos externos. No plano externo, pela aposta estratégica na integração regional e na cooperação Sul-Sul, que abriu novos grandes mercados para os produtos e serviços brasileiros e nos tornou consideravelmente menos dependentes das antigas nações hegemônicas, hoje muito castigadas pela crise.
A crise internacional deverá consolidar e aprofundar as mudanças geoeconômicas que deslocaram o centro dinâmico da economia mundial para os países emergentes. Tais países têm de aproveitar a atual conjuntura para investir mais na cooperação, na maior integração de suas economias e na conformação de uma ordem internacional menos assimétrica e mais multilateral e dinâmica. Nesse processo, a antiga arquitetura financeira internacional e suas instituições financeiras multilaterais, caudatárias de uma ordem econômica internacional que não mais se sustenta, terão de ser reformuladas. Tal reformulação dificilmente virá das nações que delas se beneficiaram e se beneficiam.
Assim sendo, a criação do Banco dos BRICs e do Banco do Sul, na medida em apresentam alternativas viáveis às instituições financeiras multilaterais e tendem a dinamizar o comércio e os fluxos de investimentos entre os países emergentes, além de se contrapor ao protecionismo não tarifário daqueles que emitem as moedas hegemônicas, representa passo significativo para o surgimento de uma ordem econômica internacional mais simétrica.
O Brasil, na condição de país beneficiário das mudanças políticas e econômicas mundiais, tem tudo a ganhar com a criação dessas novas instituições financeiras.
Marcelo Zero é assessor parlamentar da Liderança do PT no Senado