Nesta semana em que se comemora o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, em 20 de novembro, o site da Liderança do PT faz sua homenagem particular a Mahommah Gardo Baquaqua, ou simplesmente Baquaqua, autor do primeiro relato conhecido de um escravo negro no Brasil. O escrito permaneceu oculto praticamente desde que foi escrito, em meados do século 19, depois de Baquaqua ter recuperado sua liberdade, depois de uma via atribulada, onde se incluem suas escravizações, trabalhos forçados em Pernambuco e em São Paulo, ser “exportado” para os EUA, para as cidades de Nova York e Detroit, “reexportado “ para o Canadá (Toronto) e, finalmente, já como homem livre viver uma temporada no Haiti, por causa do clima semelhante à sua África natal, e outra em Liverpool, na Grã-Bretanha.
Essa intensa peregrinação do escravo tornado homem livre, com consciência para ditar sua experiência como escravo no Brasil, está prestes a ser posta ao alcance dos brasileiros depois de mais de cem anos de sua existência por iniciativa do professor de História pernambucano Bruno Verás, com financiamento do Ministério da Cultura do Brasil e do governo do Canadá
Mahommah Gardo Baquaqua foi aprisionado e vendido como escravo na África Ocidental, na primeira metade do Século 19 e traficado de Ouidá (Reino do Benin) para Pernambuco, passando também pelo Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Anos depois, já vivendo como homem livre no Canadá, ele rememorou os horrores de sua experiência ditando suas memórias— único relato autobiográfico de um escravo africano no Brasil.
“Eu imagino que haja apenas um lugar mais horrendo que o porão de um navio negreiro: é o lugar para onde senhores de escravos e seus esbirros serão enviados um dia,” escreveu Baquaqua. “Que aqueles ‘indivíduos humanitários’ que são a favor da escravidão se coloquem no lugar do escravo no porão barulhento de um navio negreiro, apenas por uma viagem da África à América, sem sequer experimentar mais que isso dos horrores da escravidão: se não saírem abolicionistas convictos, então não tenho mais nada a dizer a favor da abolição.”, afirmou o africano.
O Brasil importou mais escravos africanos que qualquer outro país das Américas — para cada europeu que imigrou para o País, oito africanos foram traficados — mas o relato de Baquaqua será a primeira publicação das memórias de uma dessas pessoas escravizadas. Trechos da história de Baquaqua já haviam sido publicados no País, em 1988, no centenário da Abolição, mas a íntegra do texto permanece inédita. O material estará disponível a internet a partir de 30 de novembro, lembrando o Mês da Consciência Negra.
O relato de Baquaqua foi lançado nos Estados Unidos, em inglês, em 1854, como “An interesting narrative. Biography of Mahommah G. Baquaqua” (“Uma interessante narrativa: biografia de Mahommah G. Baquaqua). Ditada ao abolicionista irlandês Samuel Moore, jamais havia sido traduzida para o português.
Idealizador do Projeto Baquaqua, Bruno Verás é doutorando na York University do Canadá e ex-professor de História, no ensino médio, em Pernambuco. O principal objetivo da iniciativa é contribuir para o aprimoramento do material disponível para o ensino da História e da Cultura Afro-brasileira. Prevista pela Lei 10.639/2003, a presença desse conteúdo nos currículos escolares, porém, ainda está distante de se tornar uma realidade, esbarrando não só na falta de material didático, mas, principalmente, no preconceito.
“Quando dava aulas no ensino médio, sempre que abordava a escravidão contava apenas com algumas poucas imagens de pessoas negras trabalhando em um canavial”, recorda Verás. “O fundamental nesse projeto é mostrar pessoas reais afetadas pela escravidão”.
Mais de quarto milhões de Africanos, cerca de 40% de todas as pessoas traficadas através do Atlântico, tiveram o Brasil como destino, contribuindo de maneira decisiva para forjar a identidade brasileira real — uma identidade que os segmentos dominantes relutam em reconhecer. “É uma vergonha que a escravidão não seja estudada mais profundamente no Brasil”, diz Verás. “É um passado que a classe dominante quer esquecer. Mas é um legado que não pode ser ignorado pela parte da população ainda marginalizada”.
A história de Baquaqua
A saga de Mahommah Gardo Baquaqua, originário do Norte da África, teve início por volta de 1820. Filho de um comerciante de Dijougou (hoje na República do Benin), educado em uma madraça (escola islâmica), o menino letrado e com conhecimentos de matemática acompanhava mercadores nas rotas comerciais que ligavam o então califado de Socoto e o extinto Império Ashanti, que rivalizavam no tráfico de escravos e no domínio de regiões da África Ocidental.
Capturado pelo Ashanti, foi levado a Uidá (Benin), um dos principais portos para tráfico de escravos através do Atlântico. ““Quando estávamos prontos para embarcar (para as Américas), fomos acorrentados uns aos outros e amarrados com cordas pelo pescoço e, assim, arrastados para a beira-mar. Uma espécie de festa foi realizada em terra firme naquele dia. Não estava ciente de que essa seria minha última festa na África. Feliz de mim que não sabia”, relata Baquaqua.
Sua descrição do porão do navio negreiro é horripilante:“Fomos arremessados, nus, porão adentro, os homens apinhados de um lado, e as mulheres de outro. O porão era tão baixo que não podíamos ficar de pé, éramos obrigados a nos agachar ou nos sentar no chão. Noite e dia eram iguais para nós, o sono nos sendo negado devido ao confinamento de nossos corpos.”
No Século 19, a travessia do Benin até a Costa Brasileira levava cerca de 40 dias. Os navios negreiros — também chamados de “tumbeiros”, em alusão a tumba, sepultura — registravam uma taxa de mortalidade média de 20% entre os africanos confinados em seus porões. Transportavam entre 400 e 500 pessoas—a superlotação era uma estratégia para evitar prejuízos decorrentes das mortes durante a passagem do Atlântico.
A fome e a sede eram a regra, até porque os porões abarrotados de pessoas não comportavam os suprimentos necessários para alimentar tanta gente ao longo de tanto tempo. Em muitos dias, os cativos não ingeriam absolutamente nada. “Houve um pobre companheiro que ficou tão desesperado pela sede que tentou apanhar a faca do homem que nos trazia água. Foi levado ao convés, e eu nunca mais soube o que lhe aconteceu. Suponho que tenha sido jogado ao mar”, conta Baquaqua.
Baquaqua desembarcou em Pernambuco, em 1845, onde foi vendido a um senhor de terras de Olinda. “O fazendeiro tinha grande quantidade de escravos, e não demorou muito para que eu presenciasse ele empregando livremente seu chicote contra um rapaz. Essa cena causou-me uma impressão profunda, pois, é claro, imaginei que em breve seria o meu destino”, relata
Foi vendido a um padeiro que o forçava a carregar pesadas pedras na cabeça, depois o obrigava a vender pão, soba a ameaça da chibata. O africano tentou fugir, mas também contemplou as hipóteses de suicídio ou de matar seu senhor, antes de ser vendido a um comerciante do Rio de Janeiro que o levou para o Rio Grande do Sul, onde passou a trabalhar em um navio empregado no comércio de charque.
Em 1847, a bordo de um navio carregado de café, Baquaqua aportou em Nova York, logo após o estado Americano ter abolido a escravidão. Foi libertado por um grupo de abolicionistas locais e transportado pela “ferrovia subterrânea”—rede clandestina que levava escravos fugitivos para fora dos EUA. Seu primeiro destino foi o Haiti, primeiro país das Américas a abolir a escravidão, em uma revolução concluída em 1804. Depois, ele voltou aos EUA e, finalmente, estabeleceu-se no Canadá, onde ditou suas memórias ao abolicionista irlandês Samuel Moore, em 1854.
O último paradeiro conhecido de Mahommah Baquaqua foi o porto britânico de Liverpool, em 1857, onde estudiosos acreditam que ele buscava transporte para retornar à África.
Nos Estados Unidos, as narrativas de escravos tiveram um papel fundamental no movimento abolicionista. Em 1845, o parlamento inglês aprovou a chamada Lei Bill Aberdeen, que autorizava qualquer embarcação da Marinha Real Britânica a apreender qualquer navio envolvido no tráfico negreiro em qualquer parte do mundo. Cinco anos depois, o País proibiu oficialmente o tráfico transatlântico de africanos, com a Lei Eusébio de Queirós, embora tenha feito pouco para conter a atividade clandestina— situação apontada como possível origem da expressão “para inglês ver”.
As leis do Ventre Livre — de 1871, determinando a liberdade de toda criança nascida de mãe escravizada— e dos Sexagenários—de 1885, tornando livres todos os escravos que completassem 65 anos—completavam o processo de extinção lenta e gradual da escravatura no Brasil, até que a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, encerrou quase 400 anos da prática no País, o que nos coloca na posição de última Nação do Ocidente a abolir a escravidão.
Biografia de Baquaqua – Revista Brasileira de História, da Associação Nacional de História
Cyntia Campos, com informações do jornais The Guardian e O Globo