Betinho, em 1993: precisamos dar comida e gerar empregos para tirar 32 milhões de brasileiros da indigênciaUma personagem fundamental para a história do Brasil moderno, se estivesse viva, teria completado 80 anos na última quinta (3). Herbert de Souza foi um dos atores fundamentais dos anos 80 e 90 no Brasil, no período em que o País saiu definitivamente da ditadura, marcou o início da então frágil democracia e introduziu na agenda nacional o debate sobre as mazelas da miséria e da fome – chagas seculares que só começariam a ser curadas a partir de 2003, com a posse do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Ativista da paz, o sociólogo Herbert de Sousa, ou simplesmente Betinho, com sua militância serena e sorriso tímido se converteria em símbolo da luta pela Anistia política, contra a fome e contra a Aids. “Democracia serve para todos ou não serve para nada” era uma de suas frases mais marcantes. E ele viveu em perfeita sintonia com o que pregava.
Em um País que vive a plena liberdade constitucional, que conseguiu resgatar quase 40 milhões de pessoas da miséria, nos últimos 12 anos, e é uma referência em políticas de saúde para a prevenção e assistência aos portadores do HIV, a façanha de Betinho talvez não seja completamente percebida pelas novas gerações, que não viveram a ditadura e as perseguições políticas, não testemunharam o flagelo da fome endêmica vivida por um em cada quatro de seus compatriotas e uma época em que contrair o vírus da Aids equivalia a uma sentença de morte.
O mineiro Herbert José de Sousa nasceu em 1935. Assim como os dois irmãos mais novos — o cartunista Henfil e o músico Chico Mário — sofreu desde a infância com as consequências da hemofilia. Sua militância política começou cedo, ainda no tempo de secundarista, e levou a integrar a Integrou a JEC (Juventude Estudantil Católica), a JUC (Juventude Universitária Católica) e a AP (Ação Popular).
Sua luta contra a ditadura militar imposta ao País em 1964 acabaria por leva-lo ao exílio, inicialmente no Chile, em 1971 — onde foi colhido pelo golpe contra o presidente constitucional Salvador Allende, a quem assessorava —, no México e no Canadá.
As incertezas do exílio enfrentadas por Bertinho eram tema frequente de seu irmão, Henfil, nas famosas “Cartas à Mãe”, crônicas sobre a conjuntura política publicadas em diversos periódicos brasileiros. A notoriedade alcançada por Betinho a partir desses relatos transformou-o em um símbolo dos expatriados pela ditadura, o “irmão do Henfil” celebrizado na canção “O Bêbado e a Equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, gravada por Elis Regina e convertida em hino da campanha pela anistia — “Meu Brasil / que sonha com a volta do irmão do Henfil / com tanta gente que partiu/ num rabo de foguete”.
De volta ao Brasil com a decretação da Anistia, em 1979, foi um dos fundadores do Ibase —Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas — e a se dedicar à pela reforma agrária. No início dos anos 90, articulou a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.
Além da mobilização da sociedade em favor dos excluídos, com a coleta de donativos e ações de solidariedade, o movimento liderado por Betinho trabalhou para colocar a fome a e miséria na agenda política do País. “A fome e a miséria terão que estar em todos os debates, palanques e comícios”, afirmava ele.
“O caminho para solucionar o problema de 32 milhões de brasileiros que vivem na indigência está na formação desses comitês autônomos, suprapartidários (…) acho que a solidariedade irá mudar os rumos do país (…) Nós sempre tivemos as ações do movimento pautadas no emergencial e no estrutural. Quer dizer, precisamos dar comida e gerar empregos para tirar 32 milhões de brasileiros da indigência”, explicou Betinho em entrevista ao jornal Tribuna Metalúrgica, em dezembro de 1993.
A campanha de Betinho estreitou os laços do sociólogo com o então presidente nacional do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, que em fevereiro de 1993 havia apresentado ao presidente da República, Itamar Franco, uma proposta de Política Nacional de Segurança Alimentar. Da proposta de Lula a Itamar surgiria a Comissão Especial de Combate à Fome, criada em meados de 1993 pelo governo federal, articulando todos os ministérios e com um orçamento de US$ 21 bilhões.
Betinho era o nome natural para coordenar esses esforços, por sua trajetória, pela importância alcançada pela Ação da Cidadania pelos e estudos que levaram à elaboração do primeiro “Mapa da Fome”— que apontava a existência de 32 milhões de famintos no Brasil. E assim, Betinho foi nomeado presidente da Comissão Especial de Combate à Fome e acabaria se consagrando como um símbolo da disposição da maioria da sociedade brasileira para acabar com a fome.
Essa mobilização, posta em ponto morto durante os governos tucanos, voltaria a inspirar uma política pública prioritária em 2003, com a posse de Lula na Presidência da República. É dessa época a criação do Programa Fome Zero, do governo federal, o embrião do Bolsa Família, que já tirou quase 40 milhões de brasileiros da miséria. Só em 2015, o orçamento do programa foi de R$ 27,1 bilhões, atendendo a 14 milhões de famílias.
Em 1986 Betinho descobriu ter contraído o vírus da AIDS em uma das transfusões de sangue a que era obrigado a se submeter periodicamente devido à hemofilia. Em sua vida pública esse fato repercutiu na criação de movimentos de defesa dos direitos dos portadores do vírus. A morte de Henfil e Chico Mário, seus irmãos, em 1988, e sua serenidade em falar das infecções decorrentes da AIDS, contribuíram para que a sociedade brasileira começasse a olhar o problema com menos preconceito — ao ser descoberta, no início dos anos 80, a AIDS era uma síndrome associada à promiscuidade sexual , especialmente de homossexuais.
Betinho era novamente um símbolo – desta vez, da luta contra a doença que acabaria por mata-lo, em 1997.
Cyntia Campos