A mudança do regimento da Câmara promovida pela base bolsonarista em 12 de maio é um golpe contra a democracia e a oposição, a quem querem impor o silêncio e a mordaça. Trata-se de um retrocesso abominável, pois interfere no direito à resistência e ao protesto e vilipendia o processo legislativo. Contrariando a própria etimologia da palavra Parlamento, decretou-se que oposição ou minorias pontuais não poderão falar, com a restrição imposta ao direito de manifestação. Aos presidentes da Casa e das comissões temáticas, concederam-se direitos absolutos como o de cassar a palavra de parlamentar que diga algo que os contrarie.
Abriu-se caminho para bullying, ameaças e humilhações. Censura explícita na Casa do Povo para que as oposições tenham um papel decorativo frente a uma maioria eventual. Na República, o equilíbrio entre os Poderes é peça central. Hoje, diante dos arroubos autoritários do capitão- presidente, o Judiciário tem exercido seu papel. No Congresso, o Senado, agora com a CPI da Covid-19, atua com independência. A Câmara, porém, com o novo regimento, virou um puxadinho do Palácio do Planalto. A presidência da Casa colocou-se a serviço de Bolsonaro e de sua agenda antipovo e anti-Brasil, alçando a Câmara à condição de carimbadora de projetos sem discussão e debate. Limou-se o contraditório, como almeja o ex-capitão.
A mudança sequer passou por debates nas comissões e foi feita com pretexto que não bate com os números: a postura de obstrução completa, por parte da oposição, nunca foi obstáculo à aprovação de matérias. Em 2021, das 11 Medidas Provisórias, houve obstrução completa só em duas, ou seja, 18%. No casos de Projetos de Lei, de 69 houve obstrução em 15, o equivalente a 21%.
Desde setembro de 1989, quando o regimento foi aprovado, foram sancionadas 6.508 leis ordinárias (uma lei a cada dois dias), 109 Emendas Constitucionais e quatro reformas da Previdência. Após a promulgação da Constituição de 88, Câmara e Senado elaboraram seus regimentos internos que garantiram o direito da oposição. Em mais de 30 anos, nenhum presidente da República teve problemas na aprovação de projetos de seu interesse e foi mantido diálogo com as minorias, que nunca foram caladas nem cerceadas.
O novo regimento é uma excrescência. Limita requerimentos e aniquila o direito à manifestação de divergências. Poderá haver sessão sem requerimento nenhum e sem contestação. A oposição, em vez de ter requerimentos próprios, só vai poder discutir. Acabou-se não só com a possibilidade de obstrução da oposição e de minorias eventuais, mas se fortaleceu o relator, impedindo-se qualquer atuação contrária ao interesse da maioria voltada à defesa de um projeto específico.
Foi graças ao antigo regimento que os destaques e a obstrução da oposição na PEC 186, na qual governo Bolsonaro não dava nenhuma progressão e avanço funcional nas categorias da segurança pública, — que se evitou um rolo compressor com prejuízos à categoria dos policiais em todo o Brasil. Antes, as pautas eram divulgadas às sextas-feiras, agora passou para as segundas ou até mesmo as terças. Suprimiu-se o tempo necessário para análises de assessorias e da sociedade civil. A pauta é definida imperialmente pelo presidente da Casa, em cima da hora e a reboque da maioria formada por interesses em torno dos quais foi bloqueado qualquer questionamento.
O regimento da Câmara sempre foi um pacto sagrado que unificava os partidos em torno da ideia de que sua solidez, a despeito de tentativas esporádicas de mudanças, era a garantia de equilíbrio no funcionamento da Casa. O exercício da obstrução integrava a democracia interna. Agora, rompeu-se o pacto.
Partiu-se do pressuposto de que a minoria tem que agir pela régua da maioria, ou seja, ter votos. Ora, isso é uma violação do que se entende por democracia e respeito aos blocos minoritários. O sistema de obstrução ou de fala para encaminhamentos de orientação era justamente um mecanismo que buscava levar a razão ao plenário e garantir que atores da sociedade dialogassem com parlamentares. Agora é rolo compressor, no plenário e nas comissões temáticas. A mudança vai permitir que deputados se escondam diante de projetos ruins para a sociedade como um todo, pois poderão ser aprovados sem debates, sem transparência e sem votação nominal devido à redução do número de requerimentos.
Na esteira da mudança, comissões mistas para tratar de Medidas Provisórias deixaram de funcionar. Agora, o tema vai direto ao plenário e o relator é escolhido pela vontade do presidente da Casa.
Concretamente, Bolsonaro atravessou a praça e se instalou na Câmara dos Deputados. Os métodos e objetivos são os mesmos. Autoritarismo, escárnio, deboche, estímulo ao uso da truculência, impunidade e projetos para desmontar o Estado brasileiro. Tudo para retirar direitos, calar as minorias, vender o patrimônio público a preço de banana e até mesmo alterar o mecanismo de participação popular na escolha de seus representantes, com a tentativa de volta do voto impresso.
A Câmara é, na prática, o último bastião de Bolsonaro na República. Bolsonaro apodera-se das instituições por meio de subornos ‘legais’, acordões e das brechas da lei. Assim, pode “passar a boiada” e criar leis ditatoriais, distorcendo a Constituição e levando o País ao desastre e ao caos. Sob o amparo do novo regimento foi instalada a comissão do voto impresso, pautou -se a privatização da Eletrobras e a admissibilidade da Reforma Administrativa. Até a devastadora Lei Geral do Licenciamento Ambiental foi aprovada. Um projeto de 17 anos e antagônico ao original, aprovado sem audiência pública e sem tramitar nas comissões. Continua, no entanto, a barreira de proteção ao presidente genocida, com o engavetamento de mais de 110 pedidos de impeachment.
Na democracia, divergências têm de ser explicitadas e a Câmara é exatamente a expressão da pluralidade política do País. Querem a “ditadura da maioria” no Congresso Nacional, esquecendo-se que quem é governo hoje pode ser oposição amanhã. Essa maioria de hoje quer que o governo fale sozinho. De fato, instalou-se um regimento de exceção.
Líder do partido na Câmara dos Deputados
Artigo publicado originalmente na revista Carta Capital